
Nas minhas três décadas de vida sempre observei como as mulheres eram, e continuam sendo, pilar da minha existência, memória e tradições de minha família. Hoje quero dedicar esta coluna a elas. Muitas sequer conheci, mas os ensinamentos deixados seguem vivos em nosso núcleo familiar e ressoam em nossa convivência social. Como diz a minha mãe, nós somos aquilo que aprendemos em casa.
Eu não conheci nenhuma das minhas avós. Margarida, mãe de meu pai, nunca vi nem em foto, mas a imagino em minha mente. O papai sempre contou muitas histórias dela. Alagoana do agreste, comia caramujo nativo que pegava na beira de riachos, fazia rede no tear, garrafadas, chás medicinais, farinha puba, tapioca, carnes e peixes moqueados – a comida preferida do meu pai.
Minhas tias-avós de parte de pai e minha bisavó Mariquinha eram exímias ceramistas, como manda a tradição Kariri, faziam de tudo: potes, panelas, pratos, copos… Mesmo sem conhecê-las, sei mexer com barro, tear, banhos, chás. Não me pergunte como, eu simplesmente sei.
A mãe Laurinda, minha outra bisavó paterna, nem o papai conheceu. Migrante pernambucana no período da grande seca, ela nasceu no sertão do Moxotó. Foi para Alagoas só mastigando sandália de couro para enganar a fome. Todas as mulheres de minha família foram extremamente resistentes. Nem sei se eu teria toda essa força.
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O valor da oralidade
Minha avó materna, Francisca, ou somente Ciça lá no Seridó potiguar (RN), era uma grande conhecedora de plantas e sabia quando ia chover mesmo sem nuvens no céu. Sertaneja raiz, morreu aos 48 anos de problemas pulmonares pelo uso de cigarro industrial. Tão conhecedora dos ciclos da flora nativa da Caatinga que nosso único registro dela em movimento é um vídeo ensinando a plantar caju. Tinha um enorme coração e ajudava a quem pudesse. Mamãe conta que na época de Semana Santa ela fazia vários bolos e distribuía entre as pessoas da cidade. E claro que essa é a data que minha mãe tem mais carinho.
Conheci a mãe de Ciça, minha querida bisavó Severina, de honrada memória. Faleceu de causas naturais aos 92 anos, lúcida, cachimbando e contando muita história. Tinha orgulho de ser quem era e ficava brava se escondessem seu cachimbo. Mesmo com idade avançada, sabia absolutamente tudo que lhe perguntasse. Dela aprendi o valor da oralidade, e hoje sou guardiã da história de nossa família, guardo todos os nomes, locais de origem, datas e repasso com muita responsabilidade para as novas gerações. Uma pessoa sem história é como uma árvore sem raiz.
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Afeto em forma de comida
Entre minhas ancestrais, não poderia deixar de mencionar minha mãe, Nubia, que graças aos encantados está aqui comigo – que permaneça por muito tempo. Mamãe nunca foi o tipo de mãe grudenta e coruja, ela demonstra seu amor de outras maneiras, principalmente fazendo muita comida gostosa. Aprendi bastante coisa com ela, e sigo, sou uma eterna aprendiz.
Minha mãe teve uma infância difícil, não chegou a concluir o ensino fundamental, acordava cedo para ir pro roçado pegar caju e plantar mandioca, milho, feijão, jerimum e algodão. É a filha mais velha de doze irmãos, e ajudou a cuidar de praticamente todos. Por conta disso, ela sempre me incentivou a estudar e a ser independente, inclusive de marido. Conquistou suas coisas sozinha e nunca abaixou a cabeça para quem quer que seja.
Nubia já era uma “mulher empoderada”, quando o termo ainda nem era conhecido. Mesmo na cidade sempre deu um jeito de cuidar de suas plantas e de seus bichos, tem uma pequena plantação de batata-doce roxa e milho indígena no quintal de casa.
A presença delas em tudo
Quando faço artesanato, um chá para gripe, um banho para tirar birra de criança, coloco os pés descalços na terra para espantar moleza e voltar a me sentir viva, quando faço uma comida boa, tenho pulso firme diante das situações, sou resiliente… tudo tem as carinhosas mãos de minhas matriarcas. Sinto a presença delas todos os dias em tudo que faço. Me considero uma pessoa de sorte.
Somos o sonho de nossos antepassados, mas também somos um pouco deles. Eu sou um pouco de cada uma dessas mulheres e de outras tantas que fazem parte de minha história. Mesmo estando longe de casa, sigo reproduzindo e repassando seus ensinamentos. A ancestralidade é viva e pulsante, o que se vai é somente a matéria.
Desejo que eu possa ser tão boa e sábia quanto elas, afinal, seguimos para ser ancestrais, seja das vidas que geramos e das que não geramos. Tudo no mundo é passageiro, exceto o nosso legado, reverberando os ensinamentos de nossa cultura. Minha meta é ser uma boa ancestral.