
- O número de entidades criadas por mulheres indígenas no Brasil cresceu 160%, chegando a 241 organizações, presentes em todos os estados e biomas brasileiros.
- As mulheres organizadas lutam por território e preservação ambiental, como todos os povos originários, mas também enfrentam a violência doméstica e a falta de geração de renda.
- O Mapa das Organizações das Mulheres Indígenas ajuda na articulação de ações e visibilidade dessas mulheres, especialmente na preparação para a COP30, que ocorrerá no Brasil.
As mulheres indígenas de diferentes povos e regiões estão unindo forças na luta pela demarcação de suas terras, garantia de direitos e preservação ambiental no Brasil. Esse movimento é revelado pelo recém-lançado Mapa das Organizações das Mulheres Indígenas: o número de entidades criadas por elas cresceu cerca de 160% em todo o país, indo de 92 para 241 entre 2020 e 2024.
As organizações de mulheres indígenas estão presentes nos 26 estados e no Distrito Federal, marcando espaço nos seis biomas brasileiros: Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pantanal e Pampa. O mapeamento feito pelo Instituto Socioambiental (ISA) e pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) mostra que elas se reúnem em diferentes formatos: coletivos, movimentos, comissões, associações, institutos, entre outros.
As mulheres indígenas – cujas ancestrais estavam aqui antes mesmo do Brasil ganhar esse nome, e hoje representam 50,8% das 1.693.535 pessoas indígenas que residem no país – são as homenageadas d’AzMina neste dia 8 de Março de 2025.
Falamos com cinco entidades de mulheres indígenas de várias partes do Brasil para saber sobre as suas lutas. Elas não esquecem as causas que mobilizam todos os povos originários – como o combate ao marco temporal e a busca pela demarcação de seus territórios -, mas trazem especialmente os desafios adicionais enfrentados pelas mulheres originárias.
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Quando pensamos em questões de gênero, um dado que chama a atenção é a violência doméstica entre as mulheres indígenas, seja dentro das suas aldeias ou nos meios urbanos. Um relatório do Ministério dos Povos Indígenas, em parceria com a Universidade Federal do Paraná (UFPR), revela que 394 feminicídios de mulheres e adolescentes indígenas foram registrados entre 2003 e 2022.

Tradução auxilia no acesso à Lei Maria da Penha
A proteção das mulheres e meninas é a causa central da Associação de Mulheres Indígenas do Oeste de Santa Catarina (Amioeste). A entidade derrubou barreiras linguísticas para a compreensão da Lei Maria da Penha, participando da tradução para as línguas kaingang e guarani. O trabalho começou antes mesmo da entidade ser oficialmente criada, quando Sandra Kaingang, atual presidente da Amioeste, integrava o Conselho Estadual dos Povos Indígenas de Santa Catarina (Cepin-SC).
O projeto desenvolvido em parceria com o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) contempla as línguas faladas por dois dos três maiores povos indígenas do Brasil. Os guaranis lideram o ranking populacional indígena, com cerca de 60 mil pessoas, enquanto os kaingang ficam em terceiro lugar, com mais de 37 mil.

Nas rodas de conversa e fóruns que antecederam a criação da Amioeste, lideranças kaingang, xokleng e guaranis contavam histórias de abuso e violência psicológica. Sandra viu isso acontecer com uma conselheira da Cepin-SC. “Quando a gente tá de acordo com tudo que os homens falam e fazem, tá tudo bem. Mas no momento que você se posiciona a favor do interesse das mulheres, a pressão vem pra cima de ti.”
Ela vive em um cenário mais favorável na terra indígena Toldo Imbu, mas ainda assim teve de vencer a resistência do marido para coordenar a tradução da Lei Maria da Penha para o kaingang. Na época, ele era o cacique, então Sandra mostrou o quanto seria positivo que ele fosse associado a essa iniciativa. E ela completou: “Você falou que eu tinha de valorizar aquilo que eu sei fazer, aquilo que eu sei falar, que é a minha língua.”
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Mulheres brigadistas atuam na proteção do Cerrado
Geração de renda é outro ponto de vulnerabilidade para as mulheres indígenas. Na tentativa de reverter essa situação, a Associação das Mulheres Indígenas Xerente, de Tocantins, criou a primeira brigada de incêndio formada somente por mulheres indígenas. Uma forma de buscar remuneração e também ajudar a proteger o Cerrado, bioma onde vivem, das queimadas.
Mais de 30,8 milhões de hectares foram queimados no Brasil entre janeiro e dezembro do ano passado, segundo a plataforma Monitor do Fogo, do MapBiomas. O Cerrado foi o segundo bioma mais atingido, com 9,7 milhões de hectares queimados. A Amazônia ficou em primeiro lugar: 17,9 milhões de hectares foram consumidos pelo fogo ao longo de 2024.

A brigada feminina foi formada em 2021 com 29 voluntárias, incentivadas pela contratação de homens indígenas brigadistas pelos poderes públicos. Vanessa Xerente conta que a equipe recebeu treinamento do Serviço Florestal dos Estados Unidos e reconhecimento do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).
A remuneração pelos serviços de combate a incêndio e educação ambiental chegou para poucas integrantes e por tempo limitado, mas elas persistem. Vanessa deixou a brigada após entrar na faculdade de Gestão Pública, pois não restava tempo disponível. Quinze mulheres continuam na brigada, trabalhando de forma totalmente voluntária.
“Os incêndios são muitos e a gente não consegue ficar de braço cruzado vendo os brigadistas tentando proteger o território”, afirma Vanessa. Ela lamenta apenas que a brigada não tenha virado uma possibilidade de renda para as mulheres do território Xerente. Elas continuam se dedicando ao artesanato com capim dourado e fita de buriti, mas ganham pouco. Sem políticas públicas de apoio à artesania indígena local, acabam vendendo suas peças para atravessadores.
Elas buscam apoio para gerar renda com artesanato
A valorização das artesãs e dos seus trabalhos também é uma luta da Articulação de Mulheres Indígenas do Maranhão (Amima). O estado tem diversos povos indígenas e diferentes estilos de artesanato, as mulheres guajajaras, por exemplo, fazem redes e bolsas com linhas. E as sementes de tiririca, que parecem miçangas e só brotam em julho e agosto, são usadas também pelos povos gavião, krikatí e canela. Há ainda o trabalho de cestaria com as fibras do guarumã e do buriti.
“A gente tem uma dificuldade muito grande de estar nas feiras, de estar expondo o nosso material. Às vezes a gente vende num acampamento, em algum congresso…”, conta Haidzmora Cíntia Guajajara, vice-presidente da Amima. Elas anseiam pelo momento de ter um espaço para vender os artesanatos que produzem, porque isso ajudaria nas despesas da casa.

Cíntia vive na Terra Indígena Araribóia, na região do município de Amarante, onde foi produzida uma roupa usada pela cantora Anitta. A funkeira usou o figurino em homenagem à Cabocla Jurema num show em Olinda (PE). O acontecimento aumentou a visibilidade do artesanato local, mas a clientela que chega a elas por meio das redes sociais ainda é pequena.
A Amima tem quatro coordenações regionais para articular toda a diversidade do Maranhão, e uma sede física na cidade de Imperatriz. O estado tem mais de 15 etnias indígenas, que vivem entre suas áreas de Pantanal e Cerrado. Cíntia conta que, embora os homens também lutem pelos direitos dos povos originários, as mulheres são mais ativas. “Quando vamos a Brasília, a maioria é mulher mesmo, que vai para frente, vai acampar…”.
Participação da Anmiga fez mulheres indígenas se verem no mapa
Alguns desafios são específicos de determinados territórios e etnias, mas várias demandas são iguais ou convergentes. Foi a partir dessa observação que surgiu a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), que promove conexões entre as entidades locais e regionais e auxilia o diálogo com o governo federal.

Quando o ISA (Instituto Socioambiental) lançou o primeiro mapa de entidades das mulheres indígenas em 2020, a Anmiga ainda não existia, mas na segunda edição elas participaram desde o início do processo. “Fizemos um encontro pra organizar o que a gente gostaria que o mapa trouxesse, qual a importância disso para as mulheres indígenas e como elas poderiam se ver no mapa, as suas ações e atuações”, conta Jozi Kaingang, diretora-executiva da Anmiga.
Jozi destaca a construção dos textos do Mapa das Organizações das Mulheres Indígenas, que refletem o modo de falar e de se apresentar delas. “A nossa escrita, desse lugar de mulheres indígenas, que valoriza nossos conceitos próprios, como território, como sagrado, como a nossa ancestralidade.”
Mapeamento pode ajudar articulação de entidades
Houve um aumento efetivo das entidades de mulheres indígenas organizadas nos últimos anos, mas os números atuais do Mapa também são influenciados pela mudança de metodologia. Para Luma Prado, pesquisadora do ISA, a parceria com a Anmiga permitiu alcançar mais mulheres indígenas e consequentemente registrar organizações não localizadas no primeiro mapeamento.
“A mulher indígena vai poder ver o mapa e falar: ‘aqui no meu estado tem mais x organizações, então a gente pode fazer um movimento junto com elas, tem essa outra organização que é regional, então talvez seria interessante articular regionalmente’”, comenta Luma, sobre as possibilidades trazidas pelo mapeamento.
A pesquisadora observa que as mulheres indígenas estão na luta desde sempre, mas nos últimos anos houve um impulso no interesse em criar associações e afins. Um dos motivos é o entendimento de que é preciso ter um CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) para conseguir financiamento, participar de editais e programas de apoio. Vale ressaltar que o mapeamento não se restringiu às entidades com CNPJ.
Conferência do Clima é um dos focos na Amazônia Brasileira
Uma preocupação comum a toda a população indígena, que deveria ser pauta de todo o mundo, é a preservação ambiental. Em meio ao impacto crescente das mudanças climáticas, as mulheres indígenas se preparam para participar ativamente da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30). O evento vai acontecer no Brasil, na cidade de Belém (PA), em novembro deste ano.
Telma Taurepang, coordenadora da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab), esteve em outras edições da COP. Ela espera que a estreia do Brasil como sede abra mais espaço para os povos indígenas. A capital do Pará, que receberá a conferência, integra a Amazônia Brasileira, formada por todos os estados da região Norte, além do Mato Grosso e parte do Maranhão.

A estratégia para avançar na COP é se articular com outras entidades, fortalecendo a coletividade característica do movimento. “A gente busca uma participação maior e mais direta das mulheres indígenas, levando as nossas reivindicações dentro dos painéis onde a gente entende que é da nossa luta”, explica Telma.
Para a coordenadora da Umiab, a questão climática e todas as outras pautas das mulheres indígenas estão contidas na causa central dos povos originários: a demarcação dos territórios. “Se não há uma terra demarcada, não temos educação, não temos uma floresta para ir atrás de sementes, para fazermos nossos artesanatos e também assegurar o nosso desenvolvimento econômico. Como a mulher vai buscar uma água onde ela pode ser executada, ser violentada?”.
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Preservação dos costumes desafia indígenas em meio urbano
O deslocamento dos territórios originários impacta todo o cotidiano das mulheres indígenas que vivem em centros urbanos. “Na aldeia nós temos nossos costumes. Nós temos nossas danças, nós temos nossa língua, na cidade a gente não tem esse espaço para continuar nossa cultura indígena, né?”, conta Suiyãne Txukarramãe. Ela integra a Associação das Mulheres Indígenas do Centro-Oeste Paulista (Amicop), em Bauru, que foi criada principalmente para preservação dos aspectos culturais.
O último censo do IBGE mostrou que 630.041 domicílios particulares permanentes ocupados do país têm pelo menos um morador indígena. E a maioria desses domicílios (78,21%) estão fora das Terras Indígenas. O levantamento revela ainda um aumento de 181,6% na população indígena em áreas urbanas, entre 2010 e 2022.

“A gente vem em busca de melhoria de vida, para poder dar um melhor estudo para nossos filhos”, diz Suiyãne, que vive na região onde está a Terra Indígena Araribá. A opressão à qual as mulheres eram submetidas, muitas vezes sem conhecer seus direitos e sendo vítimas de violência, também impulsionou a mãe de Suiyãne a criar a Amicop.
As mulheres indígenas da Amicop lutam pela criação de uma aldeia urbana. Uma mobilização iniciada há cerca de 20 anos, mas que ainda não conseguiu avanços. “É uma questão de preservação da nossa cultura. E principalmente dar continuidade para nossos filhos, porque nós não queremos que eles percam essa identidade indígena”, afirma Suiyãne.
De volta ao Acampamento Terra Livre
Enquanto você lê esta reportagem, mulheres indígenas de todo o país se preparam para participar do Acampamento Terra Livre (ATL), em abril deste ano, em Brasília. O ATL do ano passado foi fundamental para a construção do Mapa das Organizações das Mulheres Indígenas 2024, sediando uma etapa de checagem presencial.

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Elas voltam ao acampamento sabendo muito mais sobre outras entidades que compartilham suas lutas e sobre as possibilidades de trabalhar para fortalecer as causas. Com o Mapa, as mulheres do Ceará observam que, mesmo tendo apenas 3,3% (56.353) da população indígena do Brasil, o estado abriga 32 entidades. Enquanto as indígenas da Bahia constatam que o estado com a segunda maior população originária do país (229.103) tem somente 12 entidades.
Os números do Mapa feito pela Anmiga e pelo ISA revelam o estágio de organização das mulheres indígenas, mas deixam a dúvida sobre quantas entidades não foram alcançadas pelo levantamento. O ATL 2025 também deve contribuir para que mais pessoas conheçam esse mapeamento e saibam que ele é contínuo.
Por meio desse formulário online, as mulheres originárias organizadas podem cadastrar sua entidade a qualquer momento.
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*Artes de Giulia Santos
**Reportagem editada por Joana Suarez e Nathalia Cariatti