
A crescente organização das mulheres indígenas em entidades chama a atenção, mas a luta delas não depende da reunião em associações. Fomentando debates, ocupando espaços, liderando seus povos, elas constroem seus ativismos, sempre coletivos, mesmo quando parecem individuais. Algumas entram para a história, outras fazem história mesmo que seus nomes não fiquem registrados.
A foto de Tuíre Kayapó (1969 – 2024) encostando seu facão no rosto do presidente da Eletronorte correu o Brasil e outras partes do mundo. A imagem virou um símbolo de resistência contra a destruição da floresta e dos modos de vida indígenas. O ato da jovem kayapó aconteceu numa audiência sobre a instalação de um complexo de hidrelétricas no rio Xingu (Pará), em 1989.

O projeto da Eletronorte inicialmente – e ironicamente – batizado de Kararaô, um grito de guerra kayapó, foi paralisado por 20 anos. A proposta foi remodelada e ganhou o nome de Usina de Belo Monte. Novos protestos ocorreram, mas a hidrelétrica foi instalada. A Justiça Federal de Altamira reconheceu, em 2020, que a usina gerou um etnocídio indígena na região.
Pioneira no protagonismo feminino
Em 2023, enquanto fazia tratamento de um câncer uterino, Tuíre Kayapó se levantava contra o Marco Temporal. “Esses senadores, esses ministros – que vivem dizendo que são grandiosos, que têm direito a tudo, por que não têm coragem de chegar até nós, indígenas, e conversar cara a cara para ouvir o que temos a dizer?”, questionou em entrevista para a Repórter Brasil.
Tuíre portava seu lendário facão durante a entrevista, em outubro de 2023. Pioneira do protagonismo feminino nos embates contra ameaças aos territórios indígenas, ela sabia que abriu caminhos. “Antigamente, eu estava sozinha, mas hoje tenho essas mulheres guerreiras ao meu lado”, disse, referindo-se a mulheres que conquistaram espaço em cargos políticos, como a ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara e a presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana.
Neste 8 de março de 2025, AzMina homenageia mulheres indígenas e apresenta aqui quatro delas e um coletivo audiovisual. Elas, com suas causas, representam simbolicamente as 860.316 indígenas de mais de 260 etnias espalhadas pelo Brasil. Cada uma à sua maneira segue o caminho trilhado por mulheres indígenas como Tuíre Kayapó.
Leia mais da homenagem do 8M 2025: Organizações de mulheres indígenas se multiplicam pelo país
Natália Mapuá | A juventude indígena na luta pelo meio ambiente

Natália Mapuá nasceu na comunidade de São Miguel dos Macacos, na cidade paraense de Breves, mas enquanto for necessário lutar pelas juventudes, principalmente indígenas, o mundo é o seu lugar. “Eu tenho muita vontade de morar na comunidade, mas eu estou em um lugar de vida e de vivências que não tem a possibilidade de eu voltar a morar lá pelos próximos anos”.
A jovem mapuá vive em Belém desde os 7 anos, agora aos 26, divide seu tempo entre a cidade onde cursa a faculdade de Direito e as inúmeras viagens como representante da juventude indígena. Seu envolvimento com causas sociais começou ainda na adolescência, quando participava de protestos estudantis por melhorias nas escolas e no sistema de educação da capital do Pará.
“Sempre tive esse olhar para essas questões de direitos, mas na minha entrada na universidade, foi quando eu comecei a ter mais consciência de como perpassava os meus direitos enquanto mulher, indígena e amazônida”, conta.
Natália não parou mais. E entre o contato com outros movimentos e as visitas à sua terra de origem, o ativismo indígena foi ganhando protagonismo. Para ela, o ponto de virada foi o estágio no WWF-Brasil, começando a trajetória que a fez ganhar visibilidade, o que ocorreu entre 2021 e 2022.
Hoje, Natália é diretora-executiva da Cojovem (Cooperação da Juventude Amazônida para o Desenvolvimento Sustentável), onde concentra seu trabalho de incidência política. Foi na entidade que ela alcançou sua maior conquista: a aprovação e aplicação da lei que torna a educação ambiental obrigatória nas escolas públicas do Pará.
Rede Katahirine | Mulheres unidas pela produção audiovisual

Foto: Cristina Mena
Mulheres reunidas em rede formando um organismo diverso em origens e trajetórias, mas único em seu objetivo: valorizar o protagonismo indígena na narrativa das suas próprias histórias. Essa é a Rede Katahirine, que reúne mais de 80 mulheres indígenas da América Latina e seus trabalhos no audiovisual.
Algumas seguem a carreira de cineasta, outras filmaram apenas uma vez; tem as idosas, as adolescentes, gente de todas as idades. Em todos os casos, a Rede está ali para articular essas mulheres e ajudar na conquista de espaço para suas produções audiovisuais.
“Que a gente possa ser acolhida, que o mundo conheça também nossos modos de criar, de fazer, nossas narrativas, nossas estéticas, nossas poéticas”, deseja a cineasta Barbara Matias Kariri, integrante da Katahirine desde a criação da rede em 2022. Elas percebem que as mulheres indígenas frequentemente são excluídas das discussões sobre audiovisual.
A Rede tem quase mil filmes catalogados e, atualmente, pelo menos 35 obras estão circulando em mostras e festivais de cinema. Bárbara lembra que a contação de histórias está na essência dos povos indígenas. “O cinema ainda é um campo de contar história, não importa se você vai contar por meio de uma ficção, por meio de um documentário, se é terror, se é drama, se é comédia…”, comenta.
As mulheres da Katahirine sabem que ainda há muito espaço para avançar, mas percebem os frutos do caminho traçado até aqui. Um exemplo é a maior presença de mulheres indígenas na curadoria de festivais de cinema, o que consequentemente amplia o olhar para a realização audiovisual das indígenas.

Valdelice Veron | Uma cacica para o Mato Grosso do Sul

A luta pelos direitos indígenas entrou na vida de Valdelice Veron Kaiowá, antes mesmo dela entender seu significado. Aos 6 anos já estava nas costas do pai nas mobilizações em prol da Constituição Federal de 1988, em Brasília. Ali foi plantada a primeira semente da mulher que hoje é cacica do Mato Grosso do Sul, representante de todos os indígenas guarani kaiowá do estado.
Em encontros com outros povos, às vezes há estranhamento da posição que ela ocupa, mas entre os kaiowá, Valdelice sempre achou natural. “O meu povo é matriarcal por natureza. Não na concepção dos não indígenas, é um feminismo comunitário, um feminismo coletivo…”, acredita Valdelice. O pai que ela viu ser assassinado durante uma retomada de território em 2003, também era cacique.
Para assumir o posto, Valdelice aprendeu a fazer o “papel falar”, estudou Direito para poder entender as liminares e decisões judiciais que ameaçam as terras kaiowá. Depois cursou Ciências Sociais e fez mestrado e doutorado em antropologia. Sustentado nesse arcabouço teórico e na sabedoria ancestral, o ativismo dela chamou a atenção da Vital Voices, ONG fundada por Hillary Clinton (EUA), onde foi premiada como liderança mundial, em 2022.
Mas o reconhecimento internacional não lhe traz proteção. Em 27 de novembro do ano passado, durante uma manifestação dos povos guarani kaiowá e terena por acesso à água, a cacica foi atingida por um tiro disparado pela Polícia Militar. A dor foi física e na alma, mas Valdelice não esmoreceu: “A minha vida inteira foi lutar pela vida do povo, das crianças, das mulheres e lutar pela terra”.
Raquel Kariri | O protagonismo feminino na Escola de Ancestralidades

A indígena kariri Raquel Paris decidiu contar uma outra história quando percebeu a disparidade entre o que vivia no Crato (CE) e o que aparecia nas TVs e nos jornais. Os moradores da Caatinga apareciam sempre “como retirantes, ignorantes, flagelados, os fadados à pobreza e à escassez”, e na sua vivência nada daquilo fazia sentido.
O primeiro passo de Raquel foi fazer faculdade de Jornalismo, mas logo percebeu que a mídia tradicional não abriria espaço para suas percepções. Provocar esse debate na universidade foi a estratégia adotada a seguir. “Promover uma dissidência, promover uma ruptura no que a gente chama de Sertão, no que a gente chama de semiárido”, era sua busca ao virar professora universitária.
Tudo isso preparou terreno para o surgimento da Escola de Ancestralidades, criada por Raquel num ambiente de retomada étnica do Cariri cearense. Após tantos anos de apagamento – por não corresponderem à imagem do indígena cultivada pela sociedade -, diversas comunidades se autodeterminaram indígenas.
“A escola surge pra difundir, salvaguardar, ampliar todo esse embrasamento, que tá acontecendo aqui, todos esses movimentos, todas essas articulações, esses saberes”, explica Raquel. Feita por indígenas, para indígenas, a Escola de Ancestralidades dissemina os saberes e conhecimentos com todo o cuidado para evitar que sejam tratados de forma fetichizada, romantizada ou diminuída.
Dentro desse contexto, um grande êxito foi Histórias de Caboclas, o primeiro podcast feito por pessoas indígenas no Nordeste. Como as mulheres são as principais lideranças desse levante indígena no estado, elas assumiram o papel de apresentar a cosmologia kariri. Uma prova de que os povos originários do Ceará – considerados extintos em decreto estadual – existem, resistem e protagonizam suas narrativas.
Cristiane Pankararu | A defesa ambiental a partir do território

Cristiane Julião Pankararu destaca a participação do seu povo na Conferência da Biodiversidade 2024, em Cali, na Colômbia, entre as conquistas alcançadas. Geógrafa e mestre em antropologia, ela aponta a preservação ambiental como sua causa central. Foco iniciado com as discussões sobre a transposição do Rio São Francisco, que banha sua região de origem, a aldeia Brejo dos Padres, no município pernambucano de Tacaratu.
É da aldeia que ela se articula com o mundo, mas viaja para outros lugares sempre que a defesa do meio ambiente exige. No momento, a expectativa é pela COP30 (30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima), que vai acontecer em Belém (PA) em novembro deste ano. “A gente vai trabalhar esse plano de ação para o movimento indígena, pensando na ocupação dos povos e em anfitriar outros povos que vêm para o Brasil”.
Na luta de Cristiane, as questões ambientais sempre partem do território, que aponta como um campo de disputa constante. Por isso, um dos seus orgulhos é ter contribuído nas discussões para a Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas. O único porém é que o documento final não teve a inserção plena da Convenção sobre Diversidade Biológica, a pauta defendida por ela.
Para Cristiane, o território está no centro da questão porque todas as iniciativas passam por ele, seja para acessar o patrimônio genético daquele ecossistema, para a produção de alimentos por meio da indústria agroecológica, ou para intervenções voltadas para a produção de energia e outras formas de exploração. Ela vê oportunidades de avanço, mas ainda percebe que “o meio ambiente acaba sendo um ‘sujeito’ de direitos, sem direitos. Silenciado!”.

*Artes de Giulia Santos
** Edição de texto: Joana Suarez e Nathalia Cariatti