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8 de novembro de 2017

Não sou uma vergonha para meu povo, e me levanto para dizer: ‘Sou cigana e bissexual’

"Em populações tradicionais debates sobre lesbianidade e bissexualidade simplesmente não existem", conta Rebecca Souza

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Crédito Pixabay

Me recordo que com seis anos minha mãe colocava um disco na vitrola, e uma voz feminina, rouca e sensual cantava um lamento cigano enquanto os violões e castanholas urravam. A voz dizia que “no todos los besos son iguales. Algunos no sirven y otros no valen”.

Eu amava aquele disco, contudo reparei que minha mãe somente o escutava quando estávamos sozinhas. Um dia perguntei quem era aquela cantora, e ela respondeu que era Noelia Herendia “La Negri”, uma famosa romani (cigana) espanhola, cantora de Flamenco.

Fiquei fascinada por ela e questionei por qual motivo não tocávamos os discos dela nas festas. Minha mãe respondeu que “La Negri está contaminada pelos payos (não ciganos), pegou as porcarias deles”.

Ela me disse que um dia eu entenderia as “porcarias que contaminavam”, e eu entendi

Seis anos mais tarde entendi que “La Negri” era lésbica, e por isso nosso povo tinha raiva. Entendi que supostamente ciganos e ciganas tinham algo no sangue que os impediam de terem essa “contaminação”, e que ela era uma vergonha para nosso povo.

A única coisa que não conseguia entender era porquê eu me sentia quente quando olhava para meninas, por quais motivos eu gostava de abraçar elas.

Esse é o tema mais tabu dentro de populações tradicionais. Homossexualidade, lesbianidade e bissexualidade simplesmente são debates que não existem

Poucos dão a cara a tapa para assumir publicamente seu afeto. Demetrio Gomez, presidente da Associação Romani LGBTQI, foi um dos primeiros a acreditar que sem dar nomes seríamos cada vez mais empurrados para o casamento forçado, para a vida dupla, para a vergonha de nossos sentimentos.

Noelia, Demetrio e outras e outros foram pioneiros e pagaram por isso com o desprezo público.

O reverso, entretanto, também existe. Em pesquisa realizada pela associação, muitos LGBTs payos disseram não sentir vontade de ficar com ciganos e ciganas. Isso se deve principalmente pelos estereótipos construídos em torno da nossa etnia.

Eu, que vivi dos doze aos vinte e nove anos em jornadas que construí para quebrar paradigmas, amei e não escondi meus afetos.

Ironicamente, acabei encontrando o atual afeto em um romani que me ama e que também ama outros
homens.

Sim, hoje meu afeto está em uma relação heterossexual, mas isso não apaga todos os afetos por belas e
maravilhosas mulheres que passaram pela minha vida

Brinco sempre com meu companheiro que, se um dia me casar, já sei qual será minha marcha nupcial, afinal:

“Nem todos os beijos são iguais, alguns
não servem e outros não valem..”

 

 

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.


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