Se para se candidatar a um cargo público nas eleições houvesse uma prova que perguntasse se o candidato corre atrás de busão, lava uma louça, troca fralda e lava o próprio banheiro, eu tenho plena certeza que a cara do Congresso Nacional e das assembleias estaduais seria totalmente diferente. Seria uma maioria de mulheres negras.
Mas essas atividades qualificam alguém para elaborar leis? Bom, quem melhor para fazer políticas públicas do que as pessoas que efetivamente as utilizam nos busão, hospitais do SUS e escolas públicas desse país?
Um estudo do movimento Mulheres Negras Decidem mostrou que 58 parlamentares autodeclaradas pretas ou pardas, conforme a base de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), apresentaram 8.367 projetos de lei desde 2019, e 357 foram transformados em lei. E sabe sobre o que eles legislavam? Direitos das mulheres e dos povos tradicionais, combate ao racismo, educação básica e saúde pública.
Mulheres negras representam, demograficamente, o maior grupo dentro da população brasileira: somos 28% dos brasileiros. A maioria de nós está na base da pirâmide social: temos a menor renda, os trabalhos mais precarizados, estamos nas periferias. Então, se a gente se move, toda a sociedade se move com a gente – quem nos ensinou isso foi Angela Davis, mas a física também comprova que se você mexe nos blocos de baixo, os de cima se mexem também.
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“A presença de mulheres negras nos parlamentos do país agrega discussões e agendas muito conectadas às necessidades e anseios da população brasileira. Os projetos [de lei] demonstram como há sensibilidade social para propor mudanças normativas que impactam a vida de pessoas socialmente vulneráveis”, diz o estudo Balanço dos Mandatos das Parlamentares Negras (2019-2023).
Nossos passos vêm de longe
Não é de hoje que estamos ocupando a política brasileira: Almerinda Gama, Antonieta de Barros, Lélia Gonzalez, Benedita da Silva, Luiza de Bairros e Leci Brandão correram para que nós pudéssemos andar. Mas foi nos últimos anos que a candidatura de mulheres negras cresceu expressivamente. O estudo mostra que entre as parlamentares negras eleitas com mandatos desde 2019, 62% estão no primeiro mandato.
O assassinato brutal da vereadora Marielle Franco foi um divisor de águas nesse movimento: era preciso honrar e continuar o seu legado. E os três tiros na cabeça de Marielle mostraram que precisamos fazer isso em bloco, em quilombo, porque foi um recado claro: não somos bem vindas nesses espaços.
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O subfinanciamento às campanhas de mulheres negras é outra prova disso. Em 2020, nas últimas eleições municipais, dos mais de R$ 2 bilhões repassados pelo Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (FEFC) e Fundo Partidário, 57% foram para candidaturas de pessoas brancas, sendo 70% dos recursos para os homens.
Ainda assim, o Mulheres Negras Decidem identificou que entre as eleições municipais de 2016 e 2020, houve aumento de 32% dos votos direcionados às candidatas negras. Se fazemos isso num contexto de escassez, imagina o que não faríamos na abundância?
A esperança das urnas
O percentual de mulheres negras na Câmara dos Deputados é de pouco mais de 2%. E apenas 1% do Senado Federal, de acordo com o estudo. Quando falamos de mulheres trans e travestis, a representação é ainda menor. Do total das parlamentares do universo da pesquisa, apenas 1,7% são transexuais.
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É esse sistema (ou seria cis-tema?) que nos trouxe até aqui. Um Congresso recheado de homens brancos, cisgênero, héteros e ricos legislando em causa própria, que só fizeram crescer as desigualdades sociais, raciais e de gênero. Não é possível que a gente siga assim.
É por isso que o meu voto nessas eleições é em mulher negra e nas travestis. Em candidaturas feministas, antirracistas, comprometidas com transformações sociais – porque não basta ser mulher, se não defender os direitos do coletivo; e não basta ser negra, ser for token de partido conservador.
Onde encontrar candidaturas
Se você quiser conhecer mais da candidaturas de mulheres negras comprometidas com a defesa de direitos, a dica é consultar duas plataformas:
Agenda Marielle Franco tem candidaturas que assumiram compromissos com práticas e políticas que queiram levar o legado de Marielle adiante e se comprometer com uma agenda por um Brasil mais justo.
Quilombo nos Parlamentos é uma iniciativa que reúne mais de 120 lideranças negras comprometidas com a agenda da Coalizão Negra Por Direitos.