Estava conversando sobre identificação racial com uma amiga, filha de pai preto e mãe branca, a mesma mistura ‘do Brasil com o Egito’ da minha casa. Eu, porém, me identifico como negra e ela, não. O cabelo dela é mais crespo que o meu, mas a pele é mais clara e o seu olho é verde. Isso me lembrou outra amiga que tem o mesmo tom de pele que o meu, e se considera parda, não negra. Quando perguntei a razão, já que pela classificação do IBGE negro é a soma de pessoas pretas e pardas, ela disse que se sente usurpando um lugar que não entende ser dela.
Isso ficou me martelando: afinal, o que define identidade racial? Cor da pele, traços físicos, ascendência? Por que pessoas parecidas, com trajetórias parecidas, se identificam de maneiras diversas? É claro que não basta uma classificação do censo nacional para que alguém se sinta pertencente a um grupo. Identidade é uma construção que envolve processos intersubjetivos, sociais, históricos, políticos e ideológicos.
No Brasil, a identificação socialmente mais usada tem a ver com a cor da pele. Como aqui rolou muita miscigenação, os “afrobeges” como eu e 45% da população brasileira temos uma identidade confusa, constantemente questionada e negociada. Não somos brancas, nem pretas. E não vai ter porteiro de Wakanda para nos emitir um certificado de negritude e definir um lugar no mundo pra gente – ainda que tenha um monte de gente reivindicando esse cargo.
A pedagoga Jaque Conceição criou uma brincadeira bastante didática para explicar essa confusão, que ela chamou de “neurose parda”: um bingo para você testar sua pontuação. Eu marquei nove pontos. Se você pontuar no item “nem é tão preto assim” é importante lembrar que você não está sozinha.
Tentando se encontrar
A escritora Ana Maria Gonçalves, autora do já clássico “Um defeito de cor”, contou que o livro foi um meio para buscar suas raízes negras, por ter sua identidade constantemente negada e negociada. Ser fruto de família interracial no Brasil é frequentemente escrever um livro de 952 páginas tentando se encontrar.
Como a questão é, ao mesmo tempo, individual e coletiva, busquei respostas com uma referência sobre os aspectos sociológicos e psicanalíticos da negritude: a psiquiatra, psicanalista e escritora Neusa Santos Souza. No livro “Tornar-se Negro”, ela explica que ser negra não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser.
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Logo na introdução ela manda essa: “A descoberta de ser negra é mais do que a constatação do óbvio (aliás, o óbvio é aquela categoria que só aparece enquanto tal depois do trabalho de se descortinar muitos véus). Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades. Ser negro é tornar-se negro.“
Me descobri negra
Eu não sei como bateu aí, mas quando eu li isso, foi como rever minha trajetória na boca de outra pessoa. Me descobri negra já com 18 anos, quando entrei para um coletivo de alunos negros na faculdade de jornalismo. Desde então, tentei entender os marcadores de diferença na minha vida. Eu cresci na família branca da minha mãe, com primos loiros de olhos claros, mas (isso vai parecer muito estranho, mas é real) eu nunca tinha notado a diferença entre nós, apesar de ter a pele mais escura, os cabelos enrolados, nariz largo e ser alta como a família negra do meu pai (com a qual tive menos convivência ao longo da vida).
Meu pai era a única pessoa preta em meio à família materna. Mas isso sempre foi um não-assunto, só aparecia em piadas (quase sempre racistas). A primeira vez que identifiquei que eu era diferente foi aos 13 anos, quando ao cuidar de um primo pequeno no parquinho de um restaurante me perguntaram se eu era a babá. Entendi o que essa pergunta significava anos mais tarde. Estou contando isso pra dizer que sempre me incomodou a ideia de afirmar a minha negritude a partir de episódios de discriminação e de dor, pelo olhar do outro.
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Participar desse coletivo de alunos negros numa faculdade terrivelmente branca foi o início de um processo de apropriação da minha história e da minha ancestralidade negra a partir de um lugar de potencialidades, como Neusa fala. Depois de ter sido socializada na infância em uma família de maioria branca, na fase adulta, ao estudar e ascender socialmente, meus espaços profissionais e pessoais continuaram brancos. Foi preciso buscar me aquilombar em espaços de movimentos sociais, de lazer e também de trabalho para me encontrar.
Direitos em disputa
A questão sobre ser parda no Brasil não é nova, de tempos em tempos ela volta ao debate público. É importante situar, porém, que ela se tornou alvo de querelas e constantes reflexões, principalmente pelas conquistas das políticas de ações afirmativas e, mais especificamente, das cotas raciais nas universidades e concursos públicos. A constatação é das psicólogas Eliane Silvia Costa e Lia Vainer Schucman no artigo em que fazem uma breve discussão histórico-conceitual sobre classificações raciais brasileiras. O que não é a ameaça aos privilégios, não é mesmo?
“No Brasil, é notório que o pardo representa uma identidade racial complexa, muitas vezes confusa, difusa, negada e afirmada. Por assim dizer, refere-se a uma das dimensões mais emblemáticas do racismo à brasileira“, afirmam. Elas lembram das perguntas frequentes que aparecem nas discussões: o que faz com que alguém seja classificado como parda? Como se define quem é parda e quem é preta no Brasil? A ascendência, o pertencimento cultural e as posições políticas relativas à raça e ao racismo devem ser levadas em conta na classificação racial dos sujeitos ou apenas as características fenotípicas? Quem define o que se considerar?
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A resposta a todas essas perguntas costuma ser: depende de quem classifica e com quais critérios. O IBGE tem critérios diferentes do Movimento Negro, que por sua vez são diferentes da percepção e construção subjetiva entre pessoas de diferentes regiões do país. Desde que escrevi uma reflexão nesta coluna sobre qual é o meu lugar no Brasil, sendo filha de pai preto e mãe branca, eu recebo mensagens de pessoas na busca por uma resposta sobre elas e sobre nós.
Em novembro, por conta do mês da Consciência Negra, esse fluxo de contatos costuma aumentar. E toda às vezes eu lembro da frase da escritora norte-americana Audre Lorde, que se autoafirmava como negra, lésbica, mãe, guerreira e poeta: “se eu mesma não me definir, eu seria esmagada nas fantasias de outras pessoas e comida viva.”