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Pessoas trans também podem ter câncer de mama

Outubro Rosa sem transfobia: independentemente do gênero, principal risco para o desenvolvimento de câncer de mama, que nas campanhas é dito como 'ser mulher', na verdade é ter ovários até a idade adulta

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O estudante de arqueologia Edgard Miranda era o único homem trans no equipamento de saúde do Complexo da Maré, na zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, no dia 9 de outubro para realizar o exame de câncer de mama. “Tava tocando uma música de mulheres artistas, a sala tava toda decorada de rosa e a enfermeira vestida de rosa. Tinha corações espalhados. Não vi pessoas trans, mas vi mulheres cis de todas as idades”, contou. 

Aos 25 anos, Edgard decidiu fazer pela primeira vez os exames, apesar de estar muito longe da idade indicada para começar os acompanhamentos, que é de 50 a 79 anos. Ele é uma exceção entre os homens trans: mesmo com medo de sofrer transfobia, decidiu sair de casa e fazer exames que a Medicina (e a sociedade) divulgam como sendo necessários apenas para mulheres cisgêneras.

O principal risco para o desenvolvimento de câncer de mama, que nas campanhas é dito como ‘ser mulher’, na verdade é ter ovários até a idade adulta. “Independentemente de ser uma pessoa cis ou uma pessoa trans, se você tem ovários e estão com você até a idade adulta, eles promovem o estímulo hormonal para deixar as suas mamas com uma tendência maior a desenvolver câncer de mama”, esclarece a médica mastologista Camila Macedo Loureiro. Ela se refere ao estrogênio, hormônio que regula diversos aspectos do corpo, como os ciclos menstruais, mas que também estimula o desenvolvimento de células cancerígenas na mama. 

As maiores campanhas de prevenção ao câncer de mama são centradas na cisgeneridade, “deixando então os corpos de pessoas trans descobertos, seja para a pesquisa, para levantamentos de dados, seja para o monitoramento de como a doença pode alcançar a nossa população”, destaca Bruna Benevides, secretária de articulação da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) .

A entidade tem tentado mudar essa realidade desde 2014, incluindo travestis, mulheres trans, homens trans, pessoas transmasculinas, pessoas não-binárias e pessoas intersexo nessas discussões. 

Há uma “completa invisibilização”, diz Bruna, sobre o câncer de mama em pessoas trans. Na avaliação dela, é urgente mapear os dados da doença nesse público. “Reconhecer que o Outubro Rosa não é uma pauta exclusiva de mulheres cis e sim de pessoas que têm mamas”.

Bruna Benevides, secretária de articulação da Antra. Crédito Arquivo Pessoal

Indicações de exames para cada caso

Para quem é um homem trans ou qualquer pessoa com ovário que já fez a mastectomia masculinizadora, as chances de ter câncer de mama são menores do que quem ainda possui mamas. Nesse caso, a maioria do tecido mamário é retirado, ficando tecnicamente inviável fazer a mamografia. São indicados exames clínicos das mamas, feito por profissionais, uma vez ao ano (em casos selecionados, ultrassonografia), da mesma forma que deve-se fazer exames ginecológicos em homens trans e pessoas não-binárias.

Homens trans ou pessoas que nasceram com ovários e não fizeram mastectomia masculinizadora precisa fazer os exames de mama levando dois fatores em conta: fatores pessoais, como alguma intervenção no tórax, como tratamento de linfoma com radioterapia na mama, ou fatores familiares, como casos de câncer na família, especialmente de mama e ovário. Quem não apresenta nenhum achado relevante no histórico pessoal ou familiar, o acompanhamento clínico deve ser anual e, a partir dos 40 anos, passa a ser recomendado o exame de mamografia.

Já entre mulheres trans e travestis, detalha a médica Camila Loureiro, o risco existe, mas é baixo. A mulher trans ou travesti que não faz uso de hormônio, não chegou a desenvolver o tecido mamário e ele vai se comportar muito mais próximo de um homem cisgênero do que de uma mulher cisgênera. “Quem aumenta a mama só com silicone e não usa hormônio, teoricamente, não precisa de mamografia”. 

Leia mais: “O câncer de mama me tirou quase tudo, menos a vontade de viver”

Para as mulheres trans e travestis que usam o hormônio estrogênio, a situação é um pouco diferente, já que os hormônios fazem o tecido mamário crescer e, por isso, o risco de câncer aumenta: é preciso iniciar a realização de mamografia a partir de 50 anos ou a partir de 15 anos após o início da tomada da medicação. 

Mas a mastologista alerta: usar hormônios não deve ser contraindicado por conta do risco de câncer de mama. “Estamos falando de um risco populacional geral, se é uma mulher trans ou travesti que tem mutação genética, a conduta deve ser individualizada”, afirma Camila. Não existe uma regra geral nesses casos. Tem que fazer acompanhamento com endócrino e exames periódicos.

Foi justamente nesses acompanhamentos de rotina da hormonização que a atriz cearense Patrícia Alves da Costa, 35 anos, recebeu o encaminhamento para fazer a mamografia pela primeira vez neste mês. “Eu não costumo fazer, mas foi um pedido feito pela minha endocrinologista para saber como está a questão hormonal”, comentou. Patrícia sente falta de pessoas trans nas campanhas de câncer de mama. “Há discriminação, violência e preconceito, não estamos nas campanhas”.


Os cuidados para cada identidade:

  • Homem trans e pessoas não-binárias com ovários sem mastectomia e com risco habitual (isto é, sem alto risco pessoal ou familiar): mamografia anual a partir dos 40 anos. 
  • Homem Trans e pessoas não-binárias com ovários com mastectomia: sem rotina de mamografia. Basta exame clínico das mamas, feito por profissional, e, em casos selecionados, ultrassonografia. 
  • Mulheres trans, travestis e pessoas não-binárias sem ovários que não fazem o uso de hormônio: não tem indicação de exames de imagem, exceto quando há alguma alteração em exame clínico ou em autoexame. 
  • Mulheres trans, travestis e pessoas não-binárias sem ovários que fazem uso de hormônio: mamografia anual após 15 anos do início do hormônio ou acima de 50 anos.
Atriz cearense Patrícia Alves da Costa, mulher trans. Crédito: Netinho Nogueira/Divulgação

Por um sistema mais inclusivo

A falta de informação e de campanhas não é a única questão que afasta pessoas trans do atendimento médico e da prevenção, o preconceito também tem seu papel. O estudante Edgard, do começo desta matéria, nunca se sentiu confortável em ficar nu em consultas médicas, ainda mais por ser uma pessoa trans, mas no dia 9 de outubro tudo correu bem. “Ela [a enfermeira] não fez nenhum comentário transfóbico, racista ou gordofóbico sobre meu corpo. Ela foi do início ao fim bastante gentil”, disse. A profissional da saúde não errou os pronomes de Edgard em nenhum momento e só fez as perguntas que deveriam ser feitas, sem nada fora do protocolo.

O estudante fez todos os exames que poderia, baseado na sua idade: toque da mama, com exame de todos os lados, e o preventivo (papanicolau). O problema é que normalmente as consultas não são tranquilas assim. 

“Eu passei a não me sentir seguro dentro desses ambientes, sempre aviso antes que quero ser tratado pelo meu nome e pelos meus pronomes, mas de vez em quando erram”, afirmou o estudante que fica mais receoso em consultas ginecológicas.

Leia mais: Os corres de uma mulher trans na pandemia

Kaio Lemos, coordenador nacional do IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades) conta que também tem dificuldade de sair de casa para realizar exames ginecológicos, mesmo tendo informação e trabalhando com a temática. “O que está nos causando medo? Se perguntarmos para todas as pessoas transmasculinas vamos ter como resposta que os serviços não estão preparados para nos receber”, considera Kaio

Mesmo eu sendo um repórter que com frequência escreve sobre a saúde de pessoas trans, também tenho medo desses exames porque já fui vítima de transfobia médica quando tive uma consulta negada em abril deste ano. Quando entrevistei Kaio, ele definiu muito bem o que sentimos: “O medo não é alguém tocar na mama, não é perguntar se você menstrua ou não, não é colocar um papanicolau. É saber que aquelas pessoas não estão te vendo de acordo com a sua identidade E um simples toque na mama vai ser uma grande violência”. 

A falta de acesso à saúde humanizada faz com que pessoas trans não saiam de casa para fazer os exames, assim, se colocam em risco. “Vamos ter possibilidades de mortes de pessoas transmasculinas por câncer de mama, por câncer de útero e por câncer no ovário. Não é porque elas não querem se cuidar. Isso é a transfobia no nosso país”, apontou Kaio. 

Faltam dados importantes

Uma das maiores falhas para falar da população trans no Brasil é a ausência de dados. Sabendo disso, o IBRAT está preparando o primeiro informe sobre transmasculinidades do país. Foram entrevistadas 1.129 pessoas transmasculinas vivendo no Brasil, em todas as classes sociais, perguntadas  sobre esses exames. “Esse número já nos dá aporte para discutir uma política pública humanizada nesses serviços. Todos responderam que não se sentem bem ao realizar esses exames, porque são violentados”, explicou Kaio.

Especialista em mastectomias masculinizadoras (retirada das mamas) para pessoas trans, Camila Loureiro observa que as instituições, sejam médicas ou de cuidados da saúde, não vão se mobilizar por iniciativa própria. “Isso demanda energia, gasto, treinamento, então, nós, da sociedade civil, precisamos pressionar para que essas instituições adotem os cuidados justos e merecidos para as pessoas trans”.

Camila faz um papel que acredita que deveria ser das instituições, do hospital: o de treinar os técnicos de enfermagem, treinar os funcionários que estão envolvidos nos cuidados para falar o pronome correto, para não ficar tratando como um ser exótico, para agir com respeito e naturalidade. E a capacitação tem que ser desde a porta da unidade de saúde: o segurança, a recepção, a equipe de atendimento etc. 

E será que basta incluir pessoas trans nas campanhas sobre Outubro Rosa? O professor de inglês Thomas Hackmann, 27 anos, opina que as campanhas, como existem hoje, deveriam acabar. Ele é pessoa transmasculina não-binária e atuou como Conselheiro Municipal LGBT de São Paulo em 2015, ajudando a fundar o Comitê Técnico de Saúde Integral de Pessoas Trans na Secretaria de Saúde da cidade – atualmente faz parte da ABRASITTI (Associação Brasileira Profissional pela Saúde Integral de Pessoas Travestis, Transexuais e Intersexo).

Leia mais: Dia da Visibilidade Trans: como trazer mais cidadania aos transgêneros?

“As campanhas deveriam ir pelo caminho da informação e conscientização sobre a doença. O Outubro Rosa poderia ser usado para falar de muitos aspectos da saúde da mulher”, argumentou Thomas, acrescentando que, nesse caso, ele está se referindo à mulher cis e à mulher trans, propondo falar sobre violência, saúde mental, relacionamento abusivos, dupla jornada de trabalho. “Assim como o Novembro Azul deveria ser para falar da saúde dos diversos homens”, completou.

Esse mês, critica Thomas, “acabou virando uma promoção de exames de rastreamento até mesmo para pessoas que não são indicadas para fazer o rastreamento”. O pesquisador ressalta a orientação do INCA (Instituto Nacional de Câncer) de que a mamografia não deve ser feita por todo mundo: apenas para pessoas com ovário de 50 a 79 anos, e bienalmente, ou pessoas com casos de câncer na família. Já a Sociedade Brasileira de Mastologia orienta que o exame seja feito a partir dos 40 anos. “Para outras pessoas causam mais dano do que pode salvar a vida”.

A newsletter Elas no Congresso falou sobre a proposta em tramitação no Congresso Nacional de reduzir essa faixa etária para 40 anos. Lembrando que o diagnóstico precoce é o melhor caminho contra o câncer de mama, já que há poucas medidas que podemos tomar de prevenção, fora os exames e uma vida mais saudável. 

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