“A mulher tem que lutar pelo casamento. É o diabo fazendo seu marido beber. É o diabo fazendo seu marido trair”, foi o que Adriana* ouviu do pastor da Igreja Universal que frequentava em um dos cultos semanais . E, depois disso, chegou a voltar com o companheiro, sofrendo uma série de outras agressões até que não aguentou mais e rompeu: com ele e a igreja.
Mas o caminho do silenciamento não é o único possível dentro das religiões. Muitos grupos religiosos e igrejas entendem seu lugar como espaço de acolhimento e a influência que têm na vida das pessoas, e estão fazendo uso disso para apoiar as mulheres e combater a violência.
É o caso do trabalho que a Iyalódê Marisa de Oya realiza no centro de candomblé Ilê Asê Oyá Mesan Orun, na Vila Mariana. Ela conta que é comum que mulheres em situação de violência procurem a casa. “A primeira coisa que fazemos aqui é acolher e entender o que está acontecendo”. Depois do acolhimento, se necessário, ela encaminha essas mulheres para a assistência social.
Além do acolhimento, Marisa conta que há também um esforço de trabalhar com os homens. “Que tipo de educação esse homem está tendo para achar que ele tem o poder de bater, de humilhar e de diminuir uma mulher? O que a gente está fazendo de hoje em diante é para esses homens que estão vindo agora sejam parceiros”, explica.
Leia mais: Violência doméstica: o que é e quais são os tipos
“A igreja é parte do problema”
Não é só das lideranças religiosas que partem as iniciativas para encarar o problema. Fiéis também estão se organizando para discutir e agir em relação ao assunto.
“A igreja é uma instituição social, como outras que formam a nossa sociedade. E portanto, ela faz parte do problema. Muitas vezes ela reproduz essa violência, ela perpetua essa violência”, diz a teóloga Valéria Vilhena, fundadora do grupo Evangélicas pela Igualdade de Gênero. Ela destaca o papel da simbologia religiosa, no retrato da mulher dentro das crenças, como parte dessa perpetuação.
Valéria dedicou seu mestrado a estudar a violência doméstica entre mulheres evangélicas no Núcleo de Defesa e Convivência da Mulher Casa Sofia, centro de atendimento de mulheres vítimas de violência no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. Sua pesquisa mostrou que, naquela instituição, 40% das mulheres vítimas de violência eram evangélicas. .
“Se somos parte do problema, também podemos ser parte da solução. Só que a gente precisa entender, dialogar e admitir. Acho que isso também é uma questão: admitir que a violência contra as mulheres também permeia nossas comunidades de fé”, diz Valéria.
Leia mais: Abrigo contra a violência doméstica
O lugar da mulher na fé
Como ela, Bruna de Carvalho, da ONG Católicas Pelo Direito de Decidir, organiza um grupo de mulheres religiosas, o Fé-ministas. No entanto, o grupo de Bruna é interreligioso. “A gente sentiu a necessidade de criar um grupo de mulheres que não se sentem acolhidas dentro das suas próprias religiões, que sofrem episódios de violência. Não só física, mas abuso moral dos pastores e padres”, conta.
No grupo, que se reúne para conversar, acolher e também se posicionar politicamente dentro das comunidades, estão mulheres católicas, judias e umbandistas. “Na maioria das religiões, o papel da mulher é submissão, né? Colocam a mulher num lugar que não ajuda em nada a resolver o problema da violência doméstica, porque essa mulher se cala”, diz ela sobre a importância de que as mulheres tomem espaço dentro das religiões, se apropriem do discurso.
“Todo mundo tem uma formação religiosa, de maneira geral, então é muito importante que as mulheres se percebam dentro da religião”.
Mau uso da Bíblia
Histórias como a de Adriana, que ouviu argumentos vindos da Bíblia como justificativa para a violência que sofria, não são raras. No entanto, feministas religiosas e até mesmo padres e pastores acreditam que isso é uma má interpretação do texto.
“Infelizmente, falsos entendimentos da Bíblia são usados para acobertar a violência contra as mulheres. A proteção, a defesa e a promoção da mulher também precisam passar por um aprofundamento da religiosidade, vencendo toda forma de mascaramento da violência”, escreveu o padre Cleiton Viana da Silva, em um artigo sobre o papel da Igreja Católica no enfrentamento da violência doméstica.
O artigo do padre é parte do livro Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher – Um Problema de Toda a Sociedade, lançado pela editora católica Paulinas em agosto de 2019.