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28 de maio de 2021

É menstruação sim, e daí?

As normas sociais de gênero constroem o tabu da menstruação e uma política pública ineficiente impacta nossa capacidade de viver dignamente esses dias

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Foto: Pixabay/ Arte: AzMina

Uma das coisas que mais causam nojo e repulsa nas pessoas é a visão do sangue menstrual. Não tem situação mais constrangedora do que perceber que alguém que está menstruando teve o sangue vazado para a roupa. E há muitos anos eu venho me perguntando como podem haver reações de tanta negatividade diante de um fato da existência de tantas pessoas: menstruar é algo inerente a vida de pelo menos metade da humanidade e a outra metade que não menstrua está aqui porque alguém menstruou.

Compreender o ódio a menstruação e a pessoas menstruantes é possível quando a gente entende essa menstruação como um mecanismo de controle e submissão que se estabelece contra meninas, mulheres e demais pessoas menstruantes.

A gente vive numa sociedade patriarcal, e isso significa dizer que até hoje, infelizmente, o homem é o centro e a medida de todas as coisas. Características atribuídas ao masculino, o corpo lido como masculino, tudo isso tem mais valor. Já parou para pensar o que significa dizer que “vai botar o pau na mesa”? Em inglês quando querem depreciar um homem dizem: “don’t be pussy”. Tem uma diferença dizer que alguém é “muito macho”, e dizer que alguém é “mulherzinha” é algo para depreciar. Tudo, do corpo ao gesto, daquilo que é representativo das mulheres é destituído de dignidade, e com a menstruação não é diferente.

A menstruação é algo inerente a maioria das meninas e mulheres. Em função da existência desse tabu, que vincula esse processo a  ideia de algo nojento, odioso, que deve ser escondido, essas pessoas são forçadas a viver experiências de profunda desconexão com seus próprios corpos. Existe algo que elas vivenciam durante um longo período de suas vidas que deve ser escondido, que é invisibilizado, na produção então de uma alienação de si mesmas, de um estranhamento e de uma sensação de estar erradas que funda sua experiência na vida.

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Ao lado da ideia de que é algo nojento que aprendem a odiar e se envergonhar, existe a vinculação com a ideia de dor. Todas as pessoas que menstruam já escutaram que  menstruar é virar mulher e isso acontece porque você sofre as dores que uma mulher sofre. A ideia da dor vinculada a idea da menstruação, na verdade, é a construção da noção de que os corpos de mulheres devem ser punidos, e a única opção para que essa dor pare, vocês sabem qual é, também já devem ter ouvido: “Quando tiver filho passa”. Ou seja, as meninas e mulheres devem ser punidas e violentadas até que cumpram aquilo que, segundo a sociedade, é sua única função.

Os corpos de  meninas e mulheres que menstruam não são aceitos na sociedade, mas existem corpos ainda mais odiados: os corpos das pessoas trans que menstruam. Pessoas não binárias, homens trans, são pessoas que menstruam e nem sequer se produz sua imagem. Existe a total produção de uma aniquilação simbólica de sua existência.

A sociedade não aceita as pessoas que menstruam e as envolvem em tabus no espaço privado – não pode tocar na massa do pão, não pode plantar, não pode colher, não pode subir na arvore – mas também impede seu acesso ao espaço público, que por não estar preparado nem no que diz respeito a estrutura nem a insumos, impede que durante o período em que estão menstruando  essas pessoas exerçam sua mobilidade. Falta água nos banheiros, falta porta, falta tranca, falta papel higiênico.

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E assim se completa o cerco de produção de adoecimento para pessoas que menstruam: existem as normas sociais de gênero que constroem o tabu e existe uma política pública ineficiente que impacta na sua capacidade de viver dignamente esses dias – falta saneamento, falta água e falta a dignidade.

Sem discutir o porquê disso tudo, sem vincular esse processo a dinâmica de uma sociedade que odeia as mulheres e todas as pessoas que menstruam, não é possível viver a dignidade menstrual. A distribuição de insumos, como absorventes e coletores é parte de uma solução, mas o problema não é a falta de absorvente, é a indignidade de uma prática social violenta que retira a dignidade. Ter absorvente e não ter água, frequentar escolas e espaços públicos que não contam com banheiro, viver numa sociedade que te ensina a odiar e se envergonhar de algo inerente a seu corpo, isso tudo também precisa ser endereçado.

E se o sangue vazar para a roupa e alguém perguntar eu respondo: tô menstruada sim, e daí?

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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