
Enquanto eu pensava em escrever esse texto, uma cena me veio a cabeça. Faz de conta que você está, antes da pandemia, em uma mesa, tentando dar sua opinião. Mas a mesa pensa diferente, e cada vez que você tenta expressar sua opinião, aquela multidão de outras vozes, como se fosse uma tsunami de palavras, atropela seu caminho e sua voz se perde.
Fiquei pensando se não é isso o que tem acontecido com algumas vozes, especialmente de mulheres e especialmente de mulheres negras, no que diz respeito a uma análise racial mais profunda do que temos acompanhado no campo do entretenimento nas últimas semanas. Sim, você já sacou tudo: Eu vou me colocar a respeito de dinâmicas raciais que podem ser acompanhadas dentro e fora do BBB.
Um programa com 21 edições e que nesse ano apresenta o maior número de competidoras e competidores autodeclarados negres. Em um país de 56% da população negra, esses números que causam grande comoção deveriam causar vergonha: como assim, em 21 anos, demorar tanto tempo para fazer uma equiparação entre participantes de modo a representar a proporcionalidade das ruas na tela? Por que a edição se esmera em deixar espaço para falas como “o comportamento dele me assusta” e “eu tenho medo dele” ao apresentar reações à presença e gestos de homens negros?
São muitas as possibilidades de leituras de relações etnicorraciais que podem ser feitas, mas pela urgência aqui eu me permito apenas a duas: Por que as pessoas estão tão ansiosas para odiar as mulheres negras ali na casa? O que isso tem a ver com a realidade fora dela?
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Não estou aqui pretendendo fazer nenhuma defesa de comportamentos, nem uma crítica, e super confio naquilo que a gente sempre diz: “gosto é pessoal e cada um tem o seu”,”aqui é questão de empatia”, frases geralmente evocadas pelas pessoas que estão mobilizando imensamente as redes sociais a favor dessa ou daquela competidora, e no mesmo movimento ao contrário, para que algumas delas possam sair o mais depressa possível.
Aqui eu só queria chamar atenção para um aspecto: por que será que é tão hegemônica essa raiva, que é tão urgente essa pressa em retirar as pessoas dali, que é tão dura a mão que julga e quer eliminar? Será que se essas pessoas fossem brancas teríamos essa pressa urgente? Eu acho que não. Acho que as mulheres negras que todos estão amando odiar nas últimas semanas são mais odiadas porque são negras.
Tá brincando né Vi? Não. E posso explicar: as mulheres construíram estratégias equivocadas que podiam despertar a raiva do público? Sim, e é pior porque são negras. Uma das mulheres foi muito má com um dos participantes, e foi pior porque ela é negra. Uma das mulheres sempre quer ter razão e tem a necessidade de reprovar a atitude dos demais no grupo. Isso é muito chato e é pior porque ela é negra. É- pior- porque- elas- são negras.
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Por que é pior? É pior porque vivemos em uma sociedade racista na qual as pessoas brancas e negras são socializadas para entender que muitos espaços não pertencem às pessoas negras, espaços em que elas raramente participarão e se participarem deve ser muito. Muito agradecidas por ali estarem, silenciosas, servis, devem não anunciar sua presença. Sua presença que ali é apenas tolerada – não bem quista, não admirada – deve passar sem tensionamentos significativos. E rapidamente se constroem expectativas sobre a maneira como devem se comportar: são desenhadas expectativas de uma mansidão e gratidão assim como aquelas famílias que adotam crianças e depois tentam devolvê-las porque as crianças são agressivas, ou não foram suficientemente gratas as famílias valorosas que as adotaram.
Existe um estereótipo que alimenta as expectativas das pessoas e que não está sendo correspondido por essas mulheres negras. Em outros ambientes e amizades, mulheres com suas posturas já foram chamadas de “nega metida”, “nega antipática”, “pessoas agressivas”, “pessoas difíceis”. Em comum todos esses nomes tem a nomeação do fenômeno da não-subalternidade esperada, da não passividade esperada.
Confesse, você espera que as mulheres e homens negros em grupos e espaços hegemonicamente brancos “saibam se comportar”, afinal, “não era nem para estarem ali” e, quando enfim chegam, não se comportam. E essa sua forma de pensar revela, sim, a sua crença de que esse espaço não é para negros, e de que você acredita que a branquitude em um ato de extrema bondade consentiu nessa participação. Mas não existem almoços grátis… Esteja ali, mas, por favor, não passe da cozinha, não sente no sofá da sala, não apareça na varanda. Essas frases escutadas por uma mulher negra trabalhadora doméstica durante uma entrevista com a futura patroa servem perfeitamente para explicar qual era o lugar que você esperava que as mulheres negras ocupassem nesse jogo e, mais ainda, para explicar porque é tão grande e desproporcional a raiva que você sente de cada uma delas.
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Mas existem outras pessoas com raiva agora. Existem aquelas pessoas que quase gozam odiando essas mulheres porque na verdade sentem a liberdade e a autorização para expressar agora um ódio que sempre sentiram. A cada gesto lido como antipático, como “unfair game”, como chatice, essas pessoas estão destilando um ódio racista, um ódio que sempre esteve ali , mas proibido de ser expressado, e que agora sim pode sair a luz do dia sem medo. São pessoas que sempre se incomodaram com a intelectualidade negra reverente da ancestralidade de Carla Akotirene, com a veneração a Conceição Evaristo como grande escritora que fala “poblema”, e que sempre estiveram ali a espreita de uma oportunidade para ridicularizar essas epistemologias e agora fazem isso ao debochar da fala da mulher negra do BBB. É gente que sempre achou que branca era pra casar, nega pra fuder e mulata pra trabalhar, e que gozou quando o moço não entrou muito na vibe da moça preta. E embora a gente ainda viva num dos países mais violentos contra mulheres do MUNDO lançaram o boato que a moça foi assediadora e que “obrigou” o pobre moço a ficar com ela…
Existe um ódio, e é o ódio que a sociedade racista sente contra a população negra. Existem duas mulheres negras que o Brasil racista ama odiar. E no país que mais mata pessoas trans no mundo, sendo 88% delas mulheres negras, num país em que a violência doméstica contra mulheres brancas diminuiu mas contra mulheres negras aumenta nos últimos 10 anos, no país em que a cada dia pelo menos 6 meninas menores de 13 anos são estupradas, a maioria negras, eu fico preocupada com a falta de análise acerca desse ódio, sobre o que ele representa e sobre o que revela acerca de cada pessoa e do país quase todo.