Um dos participantes mais polêmicos da 20ª edição do Big Brother Brasil, Felipe Antoniazzi Prior, de 27 anos, foi eliminado do reality na semana passada em uma disputa com recorde de votação (mais de 1,5 bilhão de votos). O comportamento dele dividia opiniões tanto dentro quanto fora da casa: de um lado as pessoas que exaltavam o que chamaram de sinceridade (eu chamo de preconceito) e carisma, de outro, as que repudiavam suas atitudes e falas machistas.
Apesar da derrota no paredão, o ex-participante saiu aclamado por grande parte do público, incluindo celebridades, atletas e com quase seis milhões de seguidores no Instagram.
O que parecia um roteiro dos sonhos de qualquer ex-BBB não durou nem 72 horas após deixar o confinamento. Na última sexta-feira (3), a revista Marie Claire publicou uma reportagem que apontou Felipe como acusado de dois estupros e uma tentativa de estupro. A revista teve acesso a um documento exclusivo que o acusa formalmente e ouviu os depoimentos de três vítimas.
Além do embrulho no estômago ao ler as declarações da revista, algo que salta aos olhos na matéria foi o fato de todas as ocorrências citadas pelas vítimas terem acontecido no mesmo ambiente (em anos diferentes: 2014, 2016 e 2018): em jogos universitários – torneios/competições entre atléticas de diversas faculdades, normalmente organizados por uma Liga Esportiva, que contam com uma cidade-sede e estrutura para organização de festas pós-jogos.
Horas depois a InterFAU, responsável pela organização dos três eventos, respondeu à reportagem e confirmou que o Prior foi expulso dos jogos após denúncia de assédio em 2018, e diz que “não sabia dos detalhes e que tinha sido um caso de estupro”. A nota ainda diz que a comissão organizadora resolveu se pronunciar porque Prior havia se tornado uma pessoa pública: “achamos importante nos pronunciar para que as pessoas que frequentam nosso evento se sintam seguras. Estivemos sempre em contato com as vítimas, desde que o processo teve início, com a intenção de ajudá-las o máximo que podíamos”.
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No início da noite, Prior se pronunciou, por meio de uma nota da sua assessoria de imprensa, negando as acusações e que vai “adotar todas as medidas necessárias contra os que investem contra a sua civilidade”. Ele também publicou um vídeo em sua rede social falando sobre o caso.
A criminalista Maira Pinheiro, que advoga para as três mulheres, disse à Maire Claire que a violência sexual contra as mulheres no ambiente universitário é algo comum. “No processo de pesquisa, encontramos diversos estudos sobre violência sexual no contexto universitário. Em todas as faculdades, nos mais diversos torneios universitários ou em festas, acontecem casos assim”, disse.
“É preciso pensar ações voltadas não só ao acolhimento de vítimas, depois que os atos de violência e assédio acontecem, mas em ações de caráter preventivo, que promovam uma reflexão profunda sobre questões relacionadas à masculinidade, ações direcionadas aos possíveis agressores, que na maioria das vezes sequer compreendem (ou estão dispostos a compreender) que suas ações podem ser vividas como graves e inesquecíveis atos de violência”, afirmou a advogada à Marie Claire.
Após a publicação da denúncia, fui pesquisar sobre esse tipo de evento e me deparei com inúmeros casos de assédio ocorridos e relatados em jogos universitários. Os relatos revelam a comum propagação de hinos sexistas e gritos de guerra misóginos das baterias das atléticas, além de apologia ao estupro, casos de assédio sexual, estupros e tentativa de estupros, sendo essas violências reproduzidas em todas as áreas do evento: alojamento, jogos e festas.
A maioria dos relatos encontrei em redes sociais e alguns em reportagens. Um caso ocorrido em 2016, em Sorocaba, interior de São Paulo, no qual uma jovem conta ter sido estuprada durante o JUCA (Jogos Universitários de Comunicação e Artes), foi um dos que teve mais alcance na grande mídia.
O caso foi denunciado por uma aluna da ECA (Escola de Comunicação e Artes), da USP aos seguranças do local, que expulsaram o agressor, estudante do Instituto de Física da USP, segundo reportagem do Catraca Livre. Após o caso, a jovem foi levada à delegacia para fazer boletim de ocorrência. Na época, a ECAtlética publicou uma nota de repúdio nas redes sociais, que foi assinada por cerca de 70 entidades universitárias do Brasil.
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Depois da denúncia, houveram outros casos de assédio sexual no JUCA. Em um post, uma estudante relatou uma série de assédios que presenciou na edição de 2016. “Eu vi muitas meninas serem tocadas de uma forma que não queriam, e mesmo demonstrando isso claramente, não foram respeitadas. Eu ouvi os comentários mais machistas possíveis sobre como tratar mulheres como objetos. Eu vi caras forçando a barra mesmo quando as meninas diziam não. Porque é tão difícil aceitar um não?”, conta.
Também conversei com a membra de um coletivo feminista, cuja identidade será preservada (ela teme sofrer perseguição ou até alguma retaliação de grupos machistas da universidade, o que já aconteceu). O coletivo realiza desde 2016 um trabalho junto à liga esportiva de uma universidade no interior de São Paulo, responsável também por promover jogos universitários entre ao menos sete faculdades.
Ela conta que o coletivo levou para uma das reuniões a ideia de pautar temas como assédio em jogos universitários. A partir daí, foi criado um regulamento específico para assédio dentro dos jogos, bem como as punições. “Assim que a pessoa se inscreve no evento, como atleta ou não, ela tem que ler o regulamento e assina estar ciente que nesse regulamento há punições para má conduta sexual, com expulsão dos jogos ou até a proibição de participar de todos os eventos, por exemplo. Estudantes que já têm histórico de assédio dentro das universidades, mesmo não possuindo histórico de assédio em jogos universitários, também são proibidos de participarem”, explicou.
Nos dias dos eventos, que normalmente duram de três a quatro dias, o coletivo monta uma tenda onde distribui material escrito sobre educação sexual e fornece camisinhas. Além da tenda informativa, elas criaram um grupo no WhatsApp composto por voluntárias e voluntários que se revezam em turnos durante todos os dias do evento para receber denúncias e encaminhar e casos de assédio. “A gente usa acessórios que nos identificam e as pessoas que se sentem acuadas de expor alguma situação de assédio ou estupro pode procurar pessoas do nosso grupo para se reportar. Resolvemos de um tempo para cá incluir homens no grupo também, porque tivemos casos de assédio contra homossexuais”, conta.
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Quando acionado, o grupo acolhe a vítima e mostra opções que ela tem: que o grupo converse ou até expulse o agressor do evento e realizar um boletim de ocorrência – o grupo a orienta a como fazê-lo. Todo o grupo de voluntários passa por um treinamento para lidar com as situações, assim como os seguranças do evento.
Quase quatro anos após a criação do regulamento anti-assédio, como é chamado, ela conta que o coletivo já orientou ligas esportivas de outras faculdades no trabalho de conscientização em jogos universitários.
O trabalho de grupos feministas dentro de ambientes esportivos universitários tem crescido nos últimos anos. No artigo “Gênero e violência simbólica em eventos esportivos universitários paulistas”, de autoria de Miqueli Michetti e Sofia Leonor Von Mettenheim, uma aluna entrevistada da bateria da FGV (Fundação Getulio Vargas) disse que a presença de coletivos feministas cumpre principalmente o papel preventivo de marcar uma posição a possíveis assediadores de que o espaço não está livre para ofender mulheres.