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29 de julho de 2019

O pesadelo de acordar e descobrir que fui estuprada

A história da garota carioca que soube do abuso ao se ver um vídeo nos lembra da falta de controle que temos sobre nossos corpos

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“O Pesadelo”, pintura de John Henry Fuseli (Foto: Wikimedia Commons)

Esse texto é para os homens. Espero que alguns leiam. Porque boa parte do que vou escrever a maioria das mulheres já sabe.

Existe uma sensação muito desesperadora em ser mulher. É a sensação de que, por mais que nos esforcemos e lutemos por isso, não somos donas de nossos corpos. Essa sensação nos faz estar sob constante medo e nos impede de fazer e viver muito do que gostaríamos. É horrível. 

Vocês sabiam que sempre que saímos com um date novo, compartilhamos nossa localização em tempo real com as amigas? Deixamo-nas alertas, compartilhamos onde estamos pelo GPS e combinamos alguns códigos: “se eu não der sinal de vida até tal horário, manda a polícia para onde eu estiver”.

Isso é pura ilusão de controle. Mas a gente precisa ter alguma ilusão de controle, ou não  saímos de casa. 

Porque sabem, meninos, o que nos assombra em festas, encontros, bares, conversas, escolas, faculdades, hospitais, trabalho, transporte e ruas? Ser estuprada. 

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Compartilhar localização é a versão tecnológica de um monte de outras coisas que nossas mães e avós já faziam: não usa decote, não sai sozinha, não aceita bebida de estranhos, anda com spray de pimenta, leva o molho de chaves entre os dedos como um soco inglês, finge que está falando no telefone com alguém, atravessa a rua, entra numa loja e espera o homem passar, esconde seu corpo… Eu poderia passar horas listando. 

São todas técnicas para nos dar alguma sensação de proteção, de que podemos controlar nossos corpos. Mas, no fim, não podemos. Porque um dia podemos aceitar uma cerveja de um amigo numa festa e dali uma semana descobrirmos que somos protagonistas de um vídeo de estupro compartilhado com toda a cidade. 

Ela aceitou bebida de um amigo

A história da garota carioca que foi drogada e estuprada por três homens, e só descobriu isso ao ver um vídeo do abuso, me fez ter pesadelos. É aterrorizante a ideia de que isso pode acontecer com qualquer uma de nós, a qualquer momento. 

Ela não aceitou bebida de um estranho, foi de um amigo, e olha só o que houve. 

E aí alguém dirá que nem foi provado ainda que ela foi drogada e que os homens dizem que ela consentiu com tudo, inclusive a gravação do vídeo. Bem, eu duvido. Mas mesmo nesse cenário, ela não pode controlar o que foi feito com a imagem de seu corpo.

E, no frigir dos ovos, foi ela que virou atração e piada na cidade, alvo de ataques na internet e está trancada em casa, sofrendo as consequências de algo que – em um cenário de consentimento – foi feito também por eles. 

Até a Sharon Stone 

Coitada dela, moça simples do interior, sem ferramentas para lutar pelo controle do seu corpo, né? A verdade é que uma coisa não tem a ver com a outra. 

Uma das coisas mais democráticas que existe é a cultura do estupro e a violência contra a mulher: ela atinge a todas, independente de classe social, instrução ou poder. Claro que umas ficam mais vulneráveis que outras, porque as desigualdades sociais e os preconceitos raciais se somam ao machismo. Mas mesmo a mais poderosa das mulheres está sujeita a isso. 

Vejam a história de Sharon Stone: no auge da sua carreira, em um momento em que tinha muito poder, em tese, não tinha o controle sobre seu corpo. Quando ela disse: “não quero gravar uma cena de sexo nua”, o que o Sylvester Stallone fez? Deu bebida para que ela “topasse”. 

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Além de demonstrar a  falta de controle sobre nossos corpos, essas duas histórias mostram também uma outra coisa: homens acham que alterar a consciência da mulher ao ponto dela “deixar” algo rolar é sinônimo de consentimento. 

Se a lei fosse suficiente, bastaria dizer que isso é sinônimo de estupro de vulnerável. Mas não é suficiente. 

A mulher que disse “não” sóbria, muito provavelmente não mudou de ideia bêbada ou drogada. Ela só não está em condições de responder por si. E, se existe uma dúvida aí, melhor deixar pra ter certeza e garantir quando ela estiver sóbria de novo.

Eu sei que você não pensa com a cabeça debaixo 

Eu sei que você, homem, que está lendo esse texto muito provavelmente está pensando: eu nunca embebedaria uma mulher para transar, já entendi isso. Que bom! De verdade. Se você for desses, então aproveita para falar com seus amigos sobre isso. 

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E não só sobre isso. Sempre que vir uma situação em que uma mulher estiver sendo tratada como objeto, se posicione. Essa falta de controle sobre nossos corpos começa muito antes da bebida oferecida na festa. Começa nas conversas sobre como “mulheres são confusas e dizem ‘não’, querendo dizer ‘sim’”. Começa nas publicidades e campanhas que usam os corpos de mulheres para vender produtos. Começa na pornografia que mostra o homem tendo prazer enquanto a mulher tem dor. Começa nas cantadas de rua, que nos deixam extremamente desconfortáveis. Começa em falas como “homem pensa com a cabeça debaixo”. 

A gente sabe que vocês pensam com a cabeça de cima. A gente sabe que vocês não são animais. E podem sempre lembrar os outros homens disso. Nos ajudem a criar uma cultura em que a gente possa efetivamente ter controle dos nossos corpos, por favor. 

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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