Imagine-se chegando sozinha para trabalhar por um mês num país distante, sobre o qual quase não chegam notícias à sua terra natal. Em seguida, seu passaporte é confiscado pelas autoridades locais, você descobre que seu telefone está grampeado e que talvez não haja ninguém ali em quem possa confiar. Ao tentar mandar notícias para casa, fica sabendo que a internet foi cortada pelo governo para tentar impedir que a oposição se organize.
Foi isso o que aconteceu com Mariana Brecht, em 2015, quando aceitou um trabalho freelance para produzir um documentário para uma empresa brasileira na República do Congo. Para uma recém-formada em Cinema, a ideia de fazer um filme institucional para uma empresa que construía estradas, cisternas e hospitais num país pobre parecia digna – até descobrir que estava a serviço de um governo autoritário que não tinha o menor interesse em desenvolvimento social.
Para lidar com a incomunicabilidade e o silêncio impostos, a paulista natural de São Roque despejava suas dúvidas e anseios nas páginas de um diário que, anos depois, serviria de inspiração para escrever Brazza. A obra também segue esse formato, intercalado a rascunhos de cartas e e-mails. “Me espantei ao reler minhas anotações e constatar que alguns dos episódios mais absurdos do livro aconteceram de verdade”, conta.
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Lançado em março deste ano pela editora Moinhos com belíssimas ilustrações de Ane-Muanaw, Brazza é o primeiro trabalho literário de Mariana, que também atua como roteirista audiovisual, e faz referência a Brazzaville, a capital da República do Congo – separada apenas por um rio de Kinshasa, capital do país vizinho, a República Democrática do Congo. “A maioria das pessoas nem sabe que este Congo existe – até mesmo no tabuleiro de War, o Congo é um só. / Um só território – estratégico, embora falacioso”, comenta a narradora na página 13.
O clima de filme de terror desencadeado pela narração da chegada da protagonista Manuela a Brazzaville é, o tempo todo, abafado pela constatação de sua posição privilegiada enquanto branca e estrangeira naquelas terras. “Não era me tornar invisível que eu temia. Sabia que isso seria impossível. Mesmo sem passaporte. Se morresse em uma manifestação da periferia, os jornais brasileiros saberiam encontrar este Congo no mapa”, escreve na página 18.
Ainda que privilegiada por sua nacionalidade e sua raça, Manuela se vê presa de forma velada à obrigação de permanecer ali e realizar um trabalho que vai contra seus princípios. Quando se envolve com um homem negro congolês, começa a perceber sua branquitude como uma camada nociva, que a protege, ao mesmo tempo em que a aprisiona e prejudica os outros. Ela tenta, então, desvencilhar-se dessa “capa” permanente a todo custo, tanto para se sentir mais fiel a suas convicções, como para poder se conectar de fato com seu amado, mas sabe que apagá-la de fato seria impossível:
“Ser branca era como portar um casaco de pele luxuoso.
Um casaco de pele muito raro de um animal extinto caçado sem autorização.
Minhas roupas puídas, minha atitude descomplicada eram quase uma pirraça, uma afronta que acentuava o abismo entre nós.
Era o exibir ostensivo de meus privilégios.
Quis rasgar as minhas roupas, mas até minha nudez seria vista como uma excentricidade e eu seria coberta com um lençol de linho.
Quis rasgar minha pele até me tornar carne viva.
Da mesma carne sob a pele negra de Samuel.
(…)
E quando Samuel tocou em meu ombro, entendi que o abismo entre nós era formado de camadas e camadas de outras peles, uma estrutura construída pelos séculos de epidermes estiradas, classificadas, hierarquizadas.”
(Mariana Brecht em Brazza, Moinhos, 2021, p. 77)
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Essa paixão latente, porém, inviável, vai se realizando nas frestas clandestinas de um dia-a-dia em estado de exceção, entre acordos institucionais e tácitos. Esses raros momentos de cumplicidade são apresentados pela narradora personagem quase como cenas de um filme – o que reflete um pouco da trajetória da autora.
Também pelas frestas do cotidiano se dá a gradual construção de um vínculo de sororidade entre Manuela e Leila, a única outra mulher da equipe de filmagens, que a princípio parece ter opiniões completamente opostas às da protagonista. Não chega a ser uma amizade propriamente dita, mas uma cumplicidade entre quem é, constantemente e em qualquer lugar do mundo, “invadida pelo mais comum dos sentimentos: ser mulher é imprudente” (p. 84).
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Em vez de cederem à tentação patrocinada pelo patriarcado de se tornarem inimigas, as duas percebem que é muito melhor e mais prudente caminharem juntas. Assim como noutros momentos do livro, essa simples, porém, poderosa resolução é comemorada numa singela catarse:
“Gritamos contra nosso silêncio.
Gritamos só para garantir que ainda havia voz.
Uma vez roucas, nos abraçamos, rindo.
Voltamos para casa exaustas, mas a pé. Em silêncio, mas não silenciadas.
De mãos dadas, falávamos apenas uma com a outra pra sinalizar um cabo de eletricidade solto ou algum buraco na rua e dizer:
– Cuidado.
Como duas mulheres andam no mundo.”
(Mariana Brecht em Brazza, Moinhos, 2021, p. 171)
Ao longo da viagem, Manuela, que havia sido paralisada pela incomunicabilidade com suas fontes de segurança logo em sua chegada, acaba por se conectar com a força ancestral das vozes das mulheres, que apontam para sua própria voz. Essa força aparece, sobretudo, nas tradições da oralidade, como no canto das lavadeiras de uma aldeia congolesa: “Seu cantar era um tipo de superpoder / mas o mundo ainda não estava pronto a ser salvo” (p. 147). Cada mulher que se reconhece nesse poder, no entanto, talvez esteja pronta para encontrar seu caminho.