“Quería ver poesia
chea de merda
e fun esa poeta maldita
chea de merda”
“Queria ver poesia
cheia de merda
e fui essa poeta maldita
cheia de merda”
(Lupe Gómez em Os teus dedos na miña braga con regra, 1999, p. 61. Tradução nossa)
Com versos impactantes como esses, o único consenso sobre a poeta galega contemporânea Lupe Gómez só poderia ser a polêmica. A sinceridade atroz de sua literatura dificilmente deixa público e crítica imunes: há os que a amam e os que a odeiam. Acusada de fazer “poesia feia”, a escritora nascida em 1972 na Corunha, Espanha, abraça a “denúncia” e radicaliza as fronteiras da literatura, produzindo textos muitas vezes lidos como antipoéticos.
O livro Os teus dedos na miña braga con regra (“Os teus dedos na minha calcinha com menstruação”, numa tradução livre), lançado em 1999, chegou a ser censurado pelo governo da Galícia. Considerando que a literatura escrita em galego – idioma que luta por sua resistência frente ao espanhol – já é vista como uma produção marginal, a poesia de Lupe insere sua marginalidade dentro da marginalidade de seu povo e sua língua. Trata-se de uma poeta irreverente e combativa como poucas, para quem ser mulher numa sociedade machista é tema constantemente provocador:
“Na miña nenez
non houbo putas.
Cando as vin
deslumbráronme.”
“Na minha infância
não havia putas.
Quando as vi
deslumbraram-me.”
(Lupe Gómez em Pornografía, 1995. Tradução nossa)
Apesar de controversa até entre os galegos, a autora toma parte ativamente nos movimentos de independência e resgate de sua cultura natal, usando a simplicidade estética como forma de resistência: “O atraso económico da Galícia/ era uma forma de vanguarda artística”, escreve em Camuflaxe (2017, p. 23, tradução nossa). E joga luz nas vidas invisíveis das mulheres nas aldeias rurais de sua região, como sua mãe, sua avó ou sua bisavó:
“Falabas co médico sen usar palabras.
Non tiñas idioma.
A História cortou
cun coitelo interior
a beleza dos teus beizos.
O teu mundo non existía nos mapas.
As túas entrañas eran totalmente secundarias / invisibles /.”
“Falavas com o médico sem usar palavras.
Não tinhas idioma.
A História cortou
com uma faca interior
a beleza dos teus lábios.
O teu mundo não existia nos mapas.
As tuas entranhas eram totalmente secundárias / invisíveis /.”
(Lupe Gómez em Camuflaxe, 2017, p. 37. Tradução nossa)
O tom profundamente pessoal e a temática específica da poesia de Lupe é justamente o que provoca identificação em muitas leitoras, especialmente as que vêm de contextos sociais onde a marginalidade também é cotidiana – como é o caso de tantas brasileiras.
“A violência dos meus poemas é a ferida inexistente. O mundo golpeando nos meus ollos. A hipocrisía abrindo en min un socavón, unha fenda. As guerras político-económicas que me rodean. Os fillos que non nacen. O mundo rural do que fun expulsada. A relixión, que me descubriu un mundo grande de pecados e culpabilidade. Todo iso que me rodea e que tanto dano me fai e que me fai sangrar polas noites.”
A violência dos meus poemas é a ferida inexistente. O mundo golpeando nos meus olhos. A hipocrisia abrindo em mim um sumidouro, uma fenda. As guerras político-econômicas que me rodeiam. Os filhos que não nascem. O mundo rural do que fui expulsa. A religião, que me descobriu um mundo grande de pecados e culpabilidade. Todo isso que me rodeia e que tanto dano me faz e que me faz sangrar pelas noites.
(Lupe Gómez em Eu quero bailar, 2006, p. 22. Tradução nossa)
Esse recorte tão particular, porém tão precioso, da literatura mundial chegou até mim por meio da professora Teresa Bermudez, da Universidade de Vigo, que veio ministrar a disciplina “Literatura e Gênero na Literatura Galega Contemporânea” na USP, em 2017 e 2018. Antes de chegar aos versos da autora, no entanto, Teresa nos apresentou o contexto da literatura escrita em Galego e sua “ginealogia”, a formação de uma tradição literária genuinamente feminista, que certamente envolve e fortalece a produção de Lupe.
Um mundo invisível
No extremo noroeste da Espanha, ao norte de Portugal, banhada pelo Atlântico e pelo Mar Cantábrico, está a Galícia. Conhecida por sua capital, Santiago de Compostela, a comunidade autônoma espanhola abriga cerca de 3 milhões de habitantes e muita história, além de disputas políticas e culturais com grande impacto na literatura. O grande pivô desses conflitos é justamente a matéria-prima dos textos: a língua galega, idioma do qual deriva o nosso português.
No século 15, a região de tradição céltica passou a fazer parte do reino espanhol, que unificou não apenas os territórios que hoje formam a Espanha, mas também o idioma oficial, deslegitimando o uso de línguas extremamente enraizadas em suas comunidades de origem, como o galego, o catalão e o basco. No século 19, começa na Galícia um movimento de resgate do galego por meio da literatura. Em vez de escrever no idioma oficial, o castelhano, alguns autores nacionalistas passam a publicar livros em galego – que, desde o século X5, estava praticamente restrito à tradição oral.
Apesar do machismo arraigado na cultura local, a grande pioneira da literatura galega foi uma mulher, Rosalía de Castro (1837-1885), que desafiou o poder espanhol ao lançar Cantares Gallegos, em 1863. Nacionalista e feminista, a autora também enfrentou o patriarcado em sua clássica obra Follas novas, de 1880, questionando o que é escrever como mulher e recusando os temas tradicionalmente atribuídos às poetisas:
“Daquelas que cantan as pombas i as frores
todos din que teñen alma de muller,
pois eu que n’as canto, Virxe da Paloma,
¡ai!, ¿de que a terei?”
“Daquelas que cantam as pombas e as flores
todos dizem que têm alma de mulher,
pois eu que n’as canto, Virgem da Paloma,
ai!, de que a terei?”
(Rosalía de Castro, em Follas novas, 1880, 2002, p. 19. Tradução nossa)
Ginealogia: uma puxa a outra
Embora seus poemas tenham se tornado clássicos, a imagem de Rosalía foi mitificada e distorcida por um tom angelical e virginal que agradava ao poder patriarcal. Essa distorção desestimulou uma continuidade na produção literária feminina galega. Apenas a partir de meados do século 20 algumas escritoras passam a contestar essa imagem deturpada de sua precursora e a resgatar sua voz real: forte, combativa e feminista.
Autoras como Xohana Torres (1929-2017) e María Xosé Queizán (1939) inauguram uma nova fase feminista na literatura galega, dialogando explicitamente com os textos de Rosalía, a quem tomam como “mãe de tinta”, e inserindo questões relativas à emancipação das mulheres em sua produção, como a reivindicação do corpo e do prazer e o questionamento da heteronormatividade.
A partir de então, o cenário literário galego passa a ser amplamente povoado por escritoras que se colocam como mulheres e fazem reivindicações feministas explícitas ou estéticas em seus textos, em um diálogo constante de referencias às que escreveram antes delas. Assim, uma nova geração de autoras, como Ana Romaní, Chus Pato, Lupe Gómez, Marta Dacosta, Olga Novo, Rebeca Baceiredo, Xiana Arias, Yolanda Castaño e Begoña Caamaño participam da construção de sua “ginealogia” literária, impulsionando a criação de um cânone literário feminino que fortalece tanto aquelas que escreveram, como as que escrevem e as que escreverão.