Me dei a missão de fazer uma retrospectiva do ano de 2017 sob o ponto de vista do feminismo na arte. Difícil né?
Muito porque tenho a consciência de que produções incríveis acontecem a mil léguas dos meus olhos, por isso começo deixando claro que meus comentários aqui serão reflexos do que mais reverberou – ou há de reverberar – em mim.
Mas antes te convido a visitar histórias não natalinas e assustadoras:
Conhecemos várias lendas folclóricas e urbanas que narram fantasmas de mulheres que aparecem para aterrorizar pessoas “indefesas”, como a loira do banheiro, a dama de branco, a dama de vermelho, “la bruja” (México) e uma descoberta minha recente chamada dama de verde ou “Green Lady” (lá da Grã-Betanha). Desta última li histórias diferentes sobre sua origem – muitas relacionadas a feminicído – mas a parte que pego emprestada para essa coluna é seu jeito aterrorizante de mudar trilhos do trem e desviar caminhos.
Pois bem. Dois mil e dezessete, certo?
Minha leitura sobre o ano é que aconteceram eventos significativos: festivais, blocos de carnaval, selos, premiações, encontros criativos, filmes, livros, discos, peças, exposições, saraus, tanto coisa feita por mulheres que não cabe num texto…
…SÓ…
que, em contraponto, sigo encontrando festivais, blocos de carnaval, selos, premiações, encontros criativos, filmes, livros, discos, peças, exposições, saraus, todos encarados por nós como “neutros”, em que a predominância masculina (e branca) segue firme e forte.
Seremos nós mulheres artistas eternas damas de verde? Vivendo invisíveis, tentando mudar os trilhos e tendo nossas atitudes lidas como assustadoras? Ou polemizadoras?
Chegada a hora, listo abaixo seis notícias que ocuparam debates durante o ano mas que a internet efêmera como ela é deixou esfriar. Que no próximo ano esses temas se espalhem profundamente para fora do trem fantasma.
Fevereiro: Blocos formados e liderados por mulheres ocuparam as ruas de várias cidades abrindo discussões sobre lugar de fala. Letras machistas e racistas, fantasias que ridicularizam ou estereotipificam o gênero, assédios descarados e justificados pelo carnaval diminuíram ou foram ao menos problematizados.
Abril: O ator José Mayer que sempre assumiu os papéis fictícios de “macho/forte/bruto/garanhão” foi acusado de assédio pela figurinista Susllem Tonani causando posicionamento de artistas, cartas de desculpas e praticamente nenhuma consequência de punição. Do ocorrido ficou principalmente a discussão do que é assédio atrás das cenas dando início a várias denúncias e desnaturalizando comportamentos invasivos e violentos.
Julho: Três homens mataram a violonista de Campo Grande Mayara Amaral – um deles também músico com quem se relacionava – e o crime foi retratado pela mídia e pela justiça como latrocínio, não havendo abertura para falar sobre feminicídio e como ele adentra as relações de trabalho nas artes.
Setembro: Exposições do Santander Cultural e do Masp sofreram ataques de censura por grupos políticos escancarando um conservadorismo incoerente com tudo o que nos é oferecido através do corpo das mulheres nas festas e mídias. Talvez o ponto importante que resultou dessa presepada é o aumento da visibilidade sobre a arte que discute gênero e sexualidade.
Outubro: As críticas direcionadas à Big Band que comemorou os 81 anos do Hermeto Pascoal pelo fato de só ter músicos homens e brancos no palco foi desvalorizada pela classe musical e tratada como forma de censura. Também provocou relatos marcantes e alguns grupos de mulheres se uniram para pontuar a discussão com a questão da representatividade. Que não pare por aí.
Dezembro: Pensaram que eu iria deixar de fora a mais fresca polêmica do ano? O último clipe da Anitta gerou muitos textos e debates calorosos, sendo o principal dilema a questão do empoderamento versus objetificação das mulheres. Aproveito então para fazer minha ligeira reflexão: analisar obras numa sociedade cristalizada em ideais patriarcais e capitalistas é complexo. Qualquer produção cultural que flerte um questionamento sobre isso jamais sairá ilesa, porque o público cobra uma coerência impossível de se realizar. Anitta expôs seu corpo, sua voz, sua sexualidade, sua cultura de origem e seu poder de alcance internacional mas não deixa de ser uma mulher criada no mundo em que se exige padrões estéticos bizarros e o corpo feminino é tratado como objeto de desejo e consumo. Não há solução. A desconstrução pode existir, mas lenta e cheia de defeitos. Aceitemos.
Por último e não desimportante, uma motivação para (r)existirmos em 2018: escuta só essa playlist organizada pelo Slam das Minas! Apenas 157 músicas de mulheres poderosas para tocar nas festas que virão.