Penteei pela uma última vez o cabelo da minha mãe, antes dela atravessar a ponte desse mundo para o outro.
Meu povo tem uma palavra para isso: pomana, que pode ser usada para vida e morte. Todo dia temos vistos pomanas, parece que o mundo é um grande Templo que erguemos aos Senhores e Senhoras do Vale das lágrimas.
Lembrei de quando era pequena. Fui uma criança muito assustada – sinal do ofício religioso que me acompanharia para o resto da vida. Minha mãe dizia que “estava assombrada”, então toda primeira sexta-feira ela penteava meus cabelos, vestia minha melhor roupa e pela mão chegávamos à casa de Dona Esmeralda.
Ela era uma senhora com traços acentuados de paraense, com suas saias longas e voz bonita. Dona Esmeralda mandava sentar em um banquinho e, com um ramo de uma árvore (que ela chamava de “Árvore da Vida”) e um livro seguro firme entre os dedos, fazia meus medos escorrerem no chão do seu pequeno sítio.
Depois, enquanto a pequena Rebecca corria atrás de suas galinhas, ela e mamãe conversavam sobre tudo tomando café. Muitos anos depois descobri que Dona Esmeralda era a voz principal da igreja Assembleia de Deus, que era perto da casa dela. Sim, era evangélica, firme e fervorosa.
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Nunca cobrou nada da minha mãe, aquela cigana de longos cabelos negros, que o povo dizia mexer com coisas que certamente seu pastor não aprovaria.
Também nunca se negou a receber as guloseimas da minha mãe, que cuidadosamente mandava a melhor parte para ela e sua infinidade de netos. Como ela mesmo dizia: “Deus lhe deu a sina de criar crianças”, como muitas outras mulheres de nosso Brasil.
Nunca achei que Dona Esmeralda fosse “bruxa”. Ela era cristã e chamamos as pessoas pelos seus nomes. Ela era uma pessoa que curava. Encontrei muitas assim em minha vida.
Com 30 anos, padeci do pior mal da minha vida: um coração partido. Destroçada, fugi do país para esquecer aquilo que me consumia viva. Somente para descobrir que em qualquer parte do mundo seria meia noite para mim.
Até que um dia esbarrei nele. Era negro, senhorzinho já. Com seu chapéu roto, disse ver minha dor. Me deu um alho em minha mão e disse que quando estivesse pronta levasse o alho de volta a ele. Um dia subi até sua casa, em um vilarejo pobre nos arredores de Santiago (no Chile), contei minha dor, a ingratidão personificada em outro corpo, a vingança que me consumia.
Sorrindo e sem tirar seu cachimbo da boca, ele segurou minha mão e murmurou palavras antigas. A dor naquele dia se esvaiu e do amor só sobrou uma cicatriz na alma e o pedaço da meia noite dentro de mim.
Mas também houveram os “doutores e doutoras de canudo”, os médicos com formação, esses principalmente me ajudaram com minha mãe. A cada dia que a vida dela definhava eles vinham, seguravam em minha mão e diziam: “mais um dia para ela, vamos trazer mais um amanhã para ela”.
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Uma imagem que sempre me fixava era o bastão de Esculápio em seus jalecos. Pra quem não sabe, os primeiros médicos e médicas da história eram sacerdotes e sacerdotisas do Templo de Esculápio, o Deus grego da cura. É interessante que o símbolo da cura seja uma serpente, pois era ela que sussurrava a cura aos que ali presidiam.
Quem diria que séculos depois nem a serpente poderia espantar a ignorância que permeia aqueles que se apegam a acreditar em “fascismos fascinantes”, que deixam gente ignorante fascinada. E seja com seus alhos ou jalecos, imagine como realmente é um sacerdócio lutar para que uma família possa sorrir e dizer que sua pessoa amada recebeu alta.
Existe uma meia noite no mundo agora, mas eu acredito que em algum lugar desse mundo alguém está colhendo um ramo da Árvore da Vida e nos trará o amanhecer.
Dedico essa coluna a todos os profissionais de saúde e a todos e todas que com suas egrégoras de saúde se dedicaram a cuidar de minha mãe. Na sua partida só me veio a mente ela dançando a sua música preferida, da sua amada Clara Nunes: “Adeus, meu amor, não me espera, porque já vou embora, pro reino que esconde os tesouros de minha senhora”.
Que a senhora esteja dançando neste reino, minha mãe!