Existem dois campos minados quando se fala de identidade étnico-cultural. Uma é a já tão discutida apropriação cultural. A outra é a autodeclaração como técnica de identificação étnica ou racial. Enquanto mulher cigana, me incomoda muito mais pessoas que nunca pisaram em um acampamento cigano discutindo políticas públicas para a nossa etnia que uma pessoa fantasiada de cigana no Carnaval.
Apropriação cultural não é sobre poder ou não usar determinada roupa. Mas sim sobre como no dia a dia são perpetuados estereótipos que nos perseguem e nos excluem, que causam ao mesmo tempo medo e fascínio pelo nosso povo. Uma passagem trágica da nossa história ilustra isso. Em 1913, na cidade de Esperantina, no Piauí, houve um massacre de romanis (os ciganos se dividem em diversos grupos, os Rom são um deles).
Uma caravana foi acusada de roubo e, ao chegar na cidade, a polícia os cercou e mais de 100 ciganos foram mortos, segundo as poucas informações oficiais do caso. Homens, mulheres, crianças e idosos foram espancados, baleados e expostos como troféus. Mas, ironicamente, um menino chamado Roldão, morto no massacre, se tornou uma espécie de santo popular, ficando conhecido como “cigano milagroso”.
Ainda que sem nenhum reconhecimento da Igreja Católica, sua sepultura se tornou uma espécie de santuário, onde pessoas fazem peregrinação para fazer agradecimentos ou pedidos. Pessoas que eventualmente descendem dos algozes da caravana vão ao túmulo vestidos de cigano fazer pedidos, pois acredita-se que assim o pedido possa ser atendido mais rápido. Tudo isso para dizer: o problema não é vestir os trajes ciganos, mas perpetuar preconceitos que nos ferem e nos matam.
Já a autodeclaração é uma faca de dois gumes. Por um lado, ela serve para que nós, romanis ativistas, possamos nos manter no debate político e na disputa de espaço com os romanis tradicionalistas, que argumentam que não fazemos parte da etnia e, por isso, somos contra os costumes. Por outro, também permite a ação de oportunistas, como os que chamamos de “ciganos de cetim”, que se dizem de ancestralidade romani e usam roupas e trejeitos estereotipados.
No Brasil não há registros de quantas pessoas de etnia romani chegaram aqui deportadas de outros lugares ou que vieram por vontade própria. Nunca tivemos um marco oficial de Diáspora Cigana, como outros povos, pois vivíamos essencialmente em diáspora constante. Não é raro que alguém me diga que é “neto de ciganos”. Contudo, parece que essa ancestralidade serve mais como um marcador para o exótico do que realmente para a luta.
Eu tenho má vontade com festas ciganas, baralhos ciganos e aulas de dança cigana? Tenho. Mas a reflexão que quero fazer aqui é: para as pessoas que de alguma forma assumem essa identidade, não seria o caso de também debater programas de saúde, educação e empoderamento de meninas ciganas?
Como posso dizer que tudo bem você fazer sua festa para Sara Kali no dia 24 de Maio se todo dia tenho notícias de fome em acampamentos? A sua ancestralidade serve para que?
Deixo aqui uma pequena memória afetiva que escrevi há um tempo pelo meu Bato (avô) e minha Baba (avó):
Sou a neta das ciganas e dos ciganos…
Que vocês não esterelizaram forçado na Bulgária
Que vocês não mataram no massacre do Piauí
Que não foram exterminados na Grann Rendada
Que não pararam no campo de concentração no Porrajmos
Sou a neta dos ciganos e ciganas que casaram muito cedo
Que tiveram seu acesso à educação negado
Que sofreram com acusações de roubo
Que passaram fome, mas não curvaram a cabeça
Que morrem em pé para ter a certeza de não viverem ajoelhados
No entanto, não sou a neta de ciganos espirituais
Daqueles que se vestem reforçando estereótipos
Dos que têm até uma avó cigana
Dos que usam nossa etnia para perpetuar a ideia da “mulher sedutora”
Os úteros e falos que me geraram derramaram seu sangue
Caminharam pelo mundo para que eu aqui estivesse
A minha pátria é o lugar onde meu pés caminham agora
E meu povo é o orgulho de continuar resistindo
É por eles e pelos que vêm depois que ainda sigo em pé