A Revista AzMina está publicando toda quarta-feira conteúdos e reportagens investigativas da série especial sobre o Lobby Antiaborto no Brasil. Esse divã faz parte da série e busca mostrar os impactos humanos dessa frente ampla no país que desinforma e manipula para retroceder nos direitos reprodutivos. A criminalização e o grande estigma sobre aborto afetam drasticamente a vida de meninas, mulheres e pessoas que gestam.
AzMina recebe esses relatos voluntários de pessoas que abortaram nos mais variados contextos e enfrentaram desafios em um país que restringe o acesso à saúde e ao aborto, inclusive nos casos em que a interrupção é prevista em lei (risco de morte materna, anencefalia do feto e gravidez resultante de estupro). Veja a seguir um desses depoimentos inéditos:
Apesar de ser a favor da legalização do aborto no Brasil, eu não imaginei que um dia iria passar por esse processo. Tenho 23 anos e até o momento nunca senti vontade de ser mãe.
Desde que comecei a ter relações sexuais, não uso pílulas anticoncepcionais, DIU ou implantes, apenas camisinha. Passei cerca de dois anos solteira até que encontrei o meu atual namorado, ele entendeu minha escolha em não usar anticoncepcionais e isso nunca foi um problema.
Eu fui diagnosticada com SOP (Síndrome dos Ovários Policísticos) em 2018 e, desde então, acompanho meus ciclos menstruais por meio de aplicativo. São muito irregulares e duram mais de 28 dias. Os apps dão uma estimativa de quando estou no período fértil – algumas vezes eu e meu parceiro não usamos camisinha fora desse período e pouco antes de menstruar. Sempre confiei muito nisso, já que nesses anos nunca aconteceu nada.
Até que no início de fevereiro deste ano a minha “menstruação” veio com uma secreção marrom bem pastosa e em pouca quantidade, e nos dias seguintes um sangramento tão leve que nem manchava muito o absorvente, durando uns 3 dias. Eu ainda estava na esperança de que ficaria mais forte, como a menstruação normal.
Segundo teste deu positivo
Como sempre tive muita neura com gravidez, eu já tinha lido que esse “corrimento rosa” poderia ser sinal de gravidez, mas ainda assim eu não acreditava que era isso. Passaram os 3 dias e o corrimento parou e continuei pensando nisso por mais uma semana. Conversei com meu namorado, já bem preocupada, e ele me acalmou e pediu para fazer um teste de gravidez de farmácia. Fiz o teste e deu negativo, ficamos muito tranquilos depois do resultado.
Cerca de duas semanas depois, na primeira semana de março, meus seios começaram a ficar bem inchados e doloridos, sendo que ainda estava longe da minha próxima menstruação. Senti alguns enjoos e cólicas leves e falei com meu namorado sobre isso, decidimos então fazer outro teste de farmácia. Estávamos na casa dele, pois ele mora sozinho e eu não poderia fazer em casa com minha família lá.
O resultado deu positivo assim que o xixi atingiu a ponta. Foi instantâneo, na hora eu pensei “deve estar com defeito” (coitada). O desespero bateu, comecei a tremer e o coração ficou acelerado, fiquei em choque e não conseguia parar de olhar para o teste. Meu namorado, incrédulo, correu para pegar a caixa e ver se o resultado era positivo mesmo, com as duas linhas bem escuras e a ficha nada de cair.
Conheça a plataforma que reúne todas as informações sobre aborto
Nada de alegria, só desespero
Não senti um momento sequer de alegria, somente sensação de desespero, tristeza, angústia e medo. Quando a ficha caiu, eu comecei a chorar e meu namorado me abraçou por muito tempo, tentando me acalmar e dizendo que ficaria tudo bem. Algumas horas depois eu sentei com ele e disse que não queria ter um filho agora, não estava preparada. Faltavam dois semestres para terminar a faculdade e meu salário mal dava para mim. Além de tudo isso, eu não tinha a mínima vontade de ser mãe.
Ele escutou tudo com calma e disse para eu decidir isso com a cabeça fria e fazer um teste de sangue para ter certeza. No dia seguinte fui fazer o exame e o resultado foi de aproximadamente 4-5 semanas de gravidez. Não pude contar a ninguém, pois eu não queria seguir com a gravidez e ninguém iria me apoiar já que minha família é bem conservadora, e eu não tenho amigas próximas o suficiente para dividir esse tipo de notícia.
Conversei novamente com ele, e ele disse que me apoiaria em qualquer decisão que eu tomasse, apesar de estar muito preocupado com possíveis complicações do procedimento. A gente não tinha nenhum tipo de conhecimento sobre como fazer isso, nem alguém que pudesse ajudar com informações. Precisei pesquisar na internet.
O desafio de comprar o medicamento
Li sobre o Misoprostol (Cytotec) em alguns sites e fui procurar saber mais sobre ele. Pesquisei incansavelmente relatos de mulheres que utilizaram, complicações, sintomas e tudo que pude encontrar sobre o assunto. Me perguntava o tempo todo como eu iria comprar os comprimidos, quanto precisaria gastar, como eu faria aquilo sem ninguém experiente por perto e muitas outras preocupações.
Pesquisei em alguns grupos, pessoas que vendiam o comprimido e consegui achar uma mulher da minha cidade, conversamos um pouco pela internet. Sem saber se era de confiança ou não, marquei de encontrá-la em um local público para comprar os comprimidos. Peguei a quantidade que pude comprar pelo valor que consegui.
Esperei até chegar o fim de semana, fui para a casa do meu namorado e fiz todo o procedimento lá, se tivesse qualquer complicação, ele me levaria para o hospital. Me alimentei um pouco e inseri 3 unidades debaixo da língua, aguardei 30 minutos e engoli, e tomaria a segunda dose 3 horas depois. Após a primeira dose eu não senti absolutamente nada, estava com medo de não ter o suficiente ou de ter um aborto incompleto. Tentei me manter calma e tomei a segunda dose.
Leia mais: Misoprostol: o remédio que poderia salvar vidas, mas manda para a cadeia
Sangramento mostrou que estava funcionando
Nas primeiras 2 horas eu senti alguns enjoos e cólicas bem leves, mas continuava preocupada. Cinco horas após a segunda e última dose, as cólicas ficaram mais intensas, senti uma pressão forte no pé da barriga e fiquei procurando posições para aliviar a dor. Eu comecei a ter sangramento, como o da menstruação, com alguns coágulos pequenos, então percebi que estava funcionando.
Nos dias seguintes eu continuei com o sangramento com coágulos e cólicas que eram suportáveis. Dois dias após o procedimento eu senti algo mais pesado descendo e corri para o banheiro. Continuei com o sangramento por cerca de 6 dias, até que parou completamente, sem nenhum outro sintoma.
Eu me senti aliviada depois que tudo passou. Tive muito medo de não dar certo e fiquei triste em alguns momentos por não poder compartilhar isso com outra mulher da minha família. Me senti insegura por estar fazendo algo tão delicado, e sou muito grata a todo o apoio que meu parceiro me deu, sem julgar, sem questionar e fazendo questão de mostrar que eu poderia contar com ele, independente de qualquer coisa.
Essa experiência vai ficar comigo a vida inteira e agora eu terei mais atenção para não passar por isso novamente. Espero que um dia possamos ter o direito de fazer essa escolha e, principalmente, ter uma rede de apoio segura.