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21 de novembro de 2018

Cigana e negra, ambos são meus lugares de fala

Refletindo sobre o mês da Consciência Negra, Rebecca Souza fala da interseccionalidade que existe entre identidade racial e etnia

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Novembro é o mês da Consciência Negra no Brasil. As questões relacionadas à população negra (e as estatísticas que as acompanham) são debatidas em diversos lugares, o que indica que temos avançado quando o assunto é a visibilidade da causa.

Como uma mulher negra e cigana, queria trazer um olhar adicional à questão: existem pessoas de algumas etnias que possuem a pele preta, e por isso sofrem preconceito similares aos negros, mas não são vistas ou consideradas como negras.

Os dalits na Índia, os romanis (ciganos) com ascendência do Rajastão e os falashas na Etiópia são alguns dos personagens dessa invisibilidade. Esses grupos têm algo comum entre si. Além de serem pessoas de pele escura, elas fazem parte de grupos étnicos historicamente discriminados. Nessa coluna quero contar um pouco de suas histórias.

A história é conhecida: Salomão, um dos patriarcas judeus, recebeu em seu reinado a Rainha de Sabá, por quem ficou encantado pela inteligência e beleza. Os dois tiveram filhos e reinam lado a lado.

O que poucos sabem, porém, é que diferentemente do que mostram os filmes bíblicos da Metro Goldwyn Mayer, a Rainha de Sabá era uma mulher negra e seus descendentes são os chamados “Black Jews” (ou judeus negros, em uma tradução livre).

Pouco sabemos dessa comunidade, mas organizações de judeus negros dos Estados Unidos dizem que, em 2017, eles somavam cerca de 20 mil membros, inclusive ativos no movimento “Black Lives Matter”.

Contudo, esses “Black Jews” têm suas sinagogas separadas, e muitas vezes não são aceitos em sinagogas históricas.

Já os dalits, na Índia, recentemente lançaram o movimento “Kali Pride”. O nome faz um trocadilho com o nome da Deusa Kali e a palavra negra em sânscrito. É estranho que consigamos ver a pele negra neles, mas que talvez pelos traços acabamos não os identificando  como negros.

Os dalits, por serem a casta mais baixa na Índia, têm uma incrível conexão com o racismo tão conhecido por nós, pois é uma  casta composta por indianos com um tom de pele mais escuro.

Inclusive, havia nessa comunidade um grande consumo de “cremes brancos”, ou cremes para embranquecer a pele, já que o senso comum vende na Índia a ideia que o belo é a pele branca. Uma perversa herança colonial inglesa.

Com eles também vem o debate dos Romanis Kalis (ciganos negros), que por terem seus antepassados oriundos do Rajastão tendem a ser lidos como negros, mesmo que o colorismo os leia como “people of color” (termo cunhado para pessoas de cor, que não necessariamente se agregam ao que lemos como negros).

Creio, por experiência própria, que essa é uma interseccionalidade ainda muito confusa.

Lugar de fala

Eu sou uma mulher romani (cigana) e também sou negra. E, por isso, acabo vagando nesses dois movimentos, sempre tentando encontrar um lugar de fala. Tenho muita fala como mulher romani, porém quando falo como mulher negra frequentemente escuto a interrogação: “mas você não é cigana”?

Como se a minha etnia fosse a cor da minha pele e como se eu não sofresse outra opressão além do anticiganismo.

Contudo, se não estou com minhas roupas tradicionais serei olhada com toda a desconfiança que o racismo semeia. E até entre os meus serei a “negri, a kali” (palavras que romanis usam para pessoas negras).

Quando falamos de Brasil ainda esbarramos no colorismo, que diz que sou “morena, parda, marrom bombom” e tantos outros eufemismos.

O que poucos sabem é que meu pai é um militante histórico do movimento negro. É pela parte materna que tenho ascendência Romena e Cigana.

Quando olho a região norte do Brasil, onde vivo, vejo indígenas que seriam lidos como negros em outros lugares, pois na nossa região houve a reunião desses dois povos. Com isso temos os afroindígenas. Recentemente as gerações mais jovens começaram a se apropriar dessa identidade como o símbolo máximo do nosso “Sangue Cabano” (revolução popular ocorrida em Belém denominada de Cabanagem, protagonizada por negros e índios que moravam em cabanas).

Debater a nossa existência é debater o quanto a história negra é apagada.

Até mesmo quando ela não tem ligação tão direta com a história africana.

E também entender que o racismo vai nos atingir mesmo que não estejam nos lendo explicitamente como pessoas negras.

Mas nós existimos, os descendentes da Rainha de Sabá, da Deusa Kali e principalmente de uma diáspora que o colonizador arrancou as páginas. E estamos dando os primeiros passos para nos reescrever.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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