Nunca esqueci essa pergunta que coloquei como título.
Uma professora da Faculdade, Eneida Assis (já falecida e que dedicou a vida aos indígenas do Pará), me contou essa historia. Ela estava em uma aldeia no Alto Xingu e perto da comunidade indígena havia um garimpo e profissionais do sexo. Os indígenas começaram a frequentar as profissionais, voltaram com maneirismos delas e, um dia, as indígenas chamaram a professora para perguntar o que era aquela palavra, “amor”, que os homens tanto falavam. Palavra que os brancos diziam quando queriam levar elas para o mato ou para a beira do rio.
É estranho para uma sociedade construída no mito do amor descobrir que existem outras sociedades em que esse sentimento não é entendido.
Nós ciganos, quando moramos em comunidade, passamos de criança para adultos. O romântico, o flerte e a paquera são inexistentes. E, se ocorre, o namoro tem grande chance de virar um casamento precoce – por isso o grande índice de casamentos infantis nessas comunidades.
O relacionamento é heteronormativo, amor e sexualidade são um conceito só e estão intimamente entrelaçados ao casamento. E se você sai dessa comunidade, acredite, a chance de se relacionar com um homem de sua etnia acaba, pois as comunidades são machistas, patriarcais e cobram um “comportamento adequado”.
Em outro texto contei que por morar na cidade na adolescência, comecei minha vida afetiva com mulheres.
Bem, infelizmente, aqui tenho que falar do fetiche e da exotificação de mulheres de identidade étnica. Esses dois elementos estão presentes em relacionamentos bi/lesbo ou heteroafetivos.
Muito se fala sobre a solidão e a objetificação da mulher negra. E isso ocorre conosco também.
Muitas amigas muçulmanas contam que são bem mais assediadas com seus hijabs. Mulheres indígenas são consideradas pelo senso comum como inocentes e fáceis para o sexo. E mulheres romanis (ciganas)?
Ah! essas são fogosas, sobrenaturais na cama, Carmens e Esmeraldas.
Eu acabo sendo vista como a “Cigana”, e esse papel tem uma carga sexual extremamente forte.
E isso não se limita às mulheres. Meu companheiro também é objetificado. Afinal, quem não quer um homem cigano com argola de ouro e olhos com kajal? Muitas pessoas acham normal chegar em meu inbox e propor sexo para nós dois. Muitos homens, sabendo da nossa relação, me pedem que eu faça a “ponte” entre ele e o meu namorado.
Afinal, para eles, “somos ciganos, e ciganos não tem isso de fidelidade, né?”
No meu primeiro texto desta coluna, contei que a Esmeralda do Corcunda de Notre Dame é só uma adolescente de 16 anos e que no livro original morre para purgar seus pecados. Carmen, a cigana, depois de “corromper e trair todos à sua volta”, merece como fim ser esfaqueada.
O tempo todo somos culpadas e supostamente sempre estamos dispostas ao sexo casual.
Mas e o amor?
Amargamente, vi sempre parceiros e parceiras me terem no privado, mas no público havia sempre o “Sabe, não sei como meus pais/amigos/conhecidos vão reagir”. E isso sempre precedia um “Desculpe, porém você e eu temos hábitos diferentes”, ou “Não quero nada sério por enquanto”. E adivinhem quem logo depois assumia um relacionamento com uma namorada nos moldes “normais”.
Será que nossa identidade étnica nos carimba tanto ao ponto de não podermos ser dignas de relacionamento? Se um lenço na cabeça ou hábitos diferentes limitam seu afeto, qual o motivo de se aproximar dessa pessoa?
Infelizmente, eu tenho medo desse amor! Não quero conhecer essa palavra que apesar de existir na língua dos payos (não ciganos) tem um poder de machucar terrível. Por fim, deixo o meu recado: toda vez que olhar uma mulher de identidade étnica, lembre-se que antes de tudo ela é uma mulher que pode querer viver o amor.
Ensinem para nós o que é esse amor de que vocês tanto falam.