O que uma moça judia que morou em Belém do Pará e viveu um romance com o Intendente do Estado tem a ver com uma moça cigana, que morou na Polônia e escreveu poemas sobre seu povo, sentimentos e desejos?
Existe uma linha que une as duas, e essa linha é costurada pelo amor, pelo preconceito da sociedade e principalmente pela fortaleza dessas duas mulheres que ousaram ir além do espaço que lhes era dado.
Dalila Ohana era de uma família judia, bonita, dona de olhos negros que encantavam. E foram esses olhos que encantaram o Intendente do Pará, Magalhães Barata, que separado da esposa (mesmo que não oficialmente) resolveu enfrentar a conservadora sociedade da década de 40 e viver com Dalila.
Já Papusza era de etnia Romani, e muito cedo foi dada em casamento a um outro Romani, que tinha como profissão tocar violino em festas. Por passar muito tempo sozinha, ela aprendeu a ler e escrever através de jornais e livros que encontrava pela rua. E foi nesse momento que começou a escrever poemas e canções, passando a se apresentar junto ao esposo.
Em uma apresentação foi abordada pelo poeta polonês Jerzy Ficowski, com o qual viveria uma relação ambígua, sendo ele casado e figura ilustre da sociedade.
E para ambas o julgamento…
Tanto Dalila como Papusza eram acusadas de serem “bruxas”, afinal por qual motivo dois homens brancos, casados e com influência social viveriam romances com essas mulheres?
Um jornal da época chamou a Dalila de hebreia. Segundo afirmavam periódicos da década de 40, somente com obra de feitiços os ciganos corromperiam a todos com seus poderes nebulosos, enganando cidadãos de bem.
E para ambas o exílio…
Magalhães Barata começava a padecer da leucemia que o mataria em 1959, e Dalila em um ato inocente convocou sua ex-esposa e suas duas filhas para se despedirem. Em uma triste reviravolta, as três, apoiadas pelo Arcebispo e por membros da comunidade, expulsaram Dalila de casa e a proibiram de ter qualquer contato com ele. Pelo rádio ela acompanhou os momentos finais do homem com quem conviveu por 21 anos, e foi avisada para não ir ao enterro.
Papusza realizou seu sonho: teve um livro lançado por Jerzy, mas rapidamente sofreu as consequências.
Primeiro a descrença, afinal aquilo era “invenção do poeta, que uma cigana não teria capacidade de escrever”. Em contrapartida os próprios Romani não gostaram de ver suas tradições expostas para os payos (não ciganos).
Dalila foi embora de Belém. Dizem os historiadores que a população se reuniu para vaiá-la no porto. Morreu com 81 anos, sozinha em uma pousada em Paraty. Ironicamente, a casa de onde ela foi expulsa até hoje é o Palácio Episcopal, a casa do Arcebispo.
Papusza foi expulsa da comunidade, não podia mais falar que era cigana, e seu nome foi amaldiçoado. Abandonada pelo poeta, começou a demonstrar os primeiros sinais de uma depressão que posteriormente a internaria em um sanatório. De lá sairia morta. Tardiamente foi reconhecida como uma grande poetisa polonesa.
E para as duas, nosso afeto…
Para mim, escrever esta coluna foi emotivo demais. Relembrar mulheres que encararam a sociedade, quebraram padrões e não deixaram que o machismo e a xenofobia impedissem suas aspirações se relaciona e muito com o que discutimos sobre resistência e empoderamento.
Sem sombra de dúvida Dalila e Papusza foram mulheres empoderadas.
Em um poema, Papusza diz:
“Nada me compreende,
Somente o bosque e o rio”
Nós as compreendemos e, para as duas, o nosso respeito e admiração.
Para saber mais:
“Eu e as últimas 72 horas de Magalhães Barata”
Autora Dalila Ohana.
Disponivel em PDF no site UFPA 2.0
Papusza
Filme polonês de 2013
Direção Krzysztof Krauze eJoanna Kos-Krauze
* As opiniões aqui expressas são da autora e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.