
“Tem uma menina aí fora querendo falar com você”, diz meu companheiro, enquanto acabo de consolar pelo telefone, pela terceira vez naquele dia, uma mulher que está em processo de divórcio.
Peço para a mocinha entrar. Pouco mais que uma criança. Baixinha, morena com traços bem paraenses e uma fala rápida. Reparo seu olho, que mira o bolo que está em cima da mesa e será servido mais tarde no rito da Lua de Sangue (era 31 de Janeiro), corto uma fatia para ela e sento.
“Você é a cigana que é bruxa, e que todo mundo fala aqui, né?”
Já explico que se ela veio para ler tarot, esse é o oficio do outro sacerdote, eu mesma já não o faço. Então ela abaixa a voz e me explica que veio ali por um “problema de mulher”. Ela tinha 12 anos quando conheceu aquele caminhoneiro em um piquenique na praia, logo “se meteu” com ele e com 14 teve o primeiro filho. Agora, com 18, desconfia que está gestante de novo. O marido está desempregado, e a renda de casa depende do bolsa família. Ela já havia ido em uma senhora, que é enfermeira aposentada, e “resolveria isso”, mas ela estava no interior trabalhando. Então ouviu falar de mim, que talvez poderia resolver.
Logo entendo que “resolver” seria, se sei, o chá ou a “garrafada” (infusão de erva), que faria a “menstruação descer”. Ela não é a primeira que me procura com essa demanda, e mesmo que eu queira ajuda-la, sei que não posso em um país em que as leis ainda legislam sobre a natalidade e o corpo das mulheres.
Olho para aquela menina com 18 anos e me pego lembrando de mim. Eu já era uma Shivanni (bruxa, em romani), naquela época. Na verdade eu tinha sete anos quando “atravessei a ponte”, que é como meninos e meninas ciganos que ainda seguem a tradição pagã de nosso povo são iniciados nos mistérios dos Deuses. Com aquela idade já não morava com os meus e sofria todo tipo de preconceito na escola. Não é fácil ser adolescente! E menos ainda se sua cultura ou religião são desconhecidas e estereotipadas.
Hoje vejo muitas se dizerem bruxas, do sagrado feminino, sem no entanto saber como isso tem uma carga diferente para quem cresceu em uma religião como essa. Existem bruxas e bruxos, ou, na nossa língua, Shivanis e Shivans, e da feita que os Deuses lhe escolhem, você abandona tudo e passa a se dedicar àquilo.
Deste muito cedo vi mulheres padecendo do “mal que o amor traz”. Homens másculos chorando como crianças por famílias perdidas por seu comportamento, pais e mães pedindo a cura para seus filhos. “Me abençoe, Shivanni!” pediam aquelas pessoas.
Eu cresci vendo minha mãe deixando nossas necessidades pela necessidade dos outros, e hoje, mesmo ela convertida ao cristianismo, seus antigos clientes ainda lhe procuram. Durante minha adolescência perguntava com ódio ao meu Mestre iniciador por qual motivo eu tinha que ser a estranha. As meninas da minha sala só me buscavam para ler tarot, nunca para seus aniversários!
Com o tempo fui vendo a missão e a responsabilidade que aquele cargo trazia. Somos mulheres e homens que tecem sonhos. Sonhos de pessoas que já foram até seus infernos particulares e encontram o caminho para o céu conosco. Hoje, no momento em que 80% das pessoas da minha etnia se declaram evangélicos, em que Shivans e Shivannis passam a ser “emissários do demônio”, mais do que nunca meu sagrado também se tornou político. Nem em minha família é certo que o cargo será passado para um dos meus sobrinhos ou sobrinhas.
Quanto à minha cliente, somente pude prometer que se ela confirmar a gravidez tentaremos lhe ajudar. Se não estiver grávida, vamos tentar ajuda-la a usar um método contraceptivo, como o DIU.
Existe um livro chamado “A rainha dos sonhos”, que conta a história de uma sacerdotisa indiana e sua luta para encontrar seu lugar fora do muro sagrado do Templo. Nele há o seguinte poema:
“O sonho vem anunciando alegria.
Acolho o sonho.
O sonho vem anunciando tristeza.
Acolho o sonho.
O sonho é um espelho refletindo minha beleza.
Abençoo o sonho.
O sonho é um espelho refletindo minha feiura.
Abençoo o sonho,
Minha vida não passa de um sonho
Do qual acordarei na morte,
Que não passa de um sonho da vida”
Que orgulho que tenho de ser a mulher que tece os sonhos.