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21 de fevereiro de 2018

Pode um diretor mudar uma ópera para falar de machismo e racismo?

Rebecca Souza narra a nova montagem da ópera 'Carmen', que levanta o debate sobre violência contra a mulher e anticiganismo. "Passaram os séculos e ainda queremos que mulheres sejam punidas por ousar ser quem são".

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Um momento de ‘Carmen’, na Ópera de Firenze. (Foto: PIETRO PAOLINI TERRAPROJECT)

A cidade de Florença não esperava por aquilo! E logo toda Itália estava debatendo: pode um diretor mudar o final de uma ópera para levantar um debate sobre violência contra mulher e anticiganismo?

Não somente pode como aconteceu.

Na nova temporada da ópera “Carmen”, no teatro Maggio Musicale, em um final surpreendente, Carmen, a cigana, mata a tiros Dom José, o obcecado apaixonado por ela.

Pra quem não conhece a história original de Georges Bizet, Carmen é uma cigana da cidade de Sevilha (Espanha), que após se meter em uma briga é presa por Dom José. O personagem, uma autoridade policial, homem de moral cristã, tem uma noiva, chamada Micaela.

Porém, ele logo se vê seduzido por Carmen, e abandona tudo por ela mesmo sendo avisado na mais famosa ária da ópera “La Habanera” que:

“Quando o amarei?
Meu Deus, eu não sei
Talvez nunca
Talvez amanhã
Mas não hoje, isso é certo”

Depois de passar por diversas atribulações e brigas por seu ciúme, Dom José resolve reatar com Micaela e sua antiga vida, mas não sem antes avisar a Carmen que ele voltará, e que ela deve se manter fiel.

Ela passa a se envolver com um toureiro Escamillo, quando um transtornado Dom José regressa e tenta obrigar que a cigana seja fiel e fique unicamente com ele, já está casado com Micaela. Diante de sua recusa ele enfim a ceifa com uma facada.

Desde de sua primeira apresentação em 1785, a obra foi motivo de críticas.

Primeiro que, para todos, Carmen seria “uma leviana, uma mulher má que corrompe o honesto Dom José”.vRacistas também se revoltaram com a voz e protagonismo dado pelo autor a uma mulher Romani. Como Carmen “ousa” seduzir um homem noivo e mesmo assim se envolver com outros? Mesmo que este homem volte para sua noiva, como ela pode “seguir em frente” e ter outro relacionamento?

Na versão de 2018, Carmen vive em um assentamento de c iganos romenos na Itália, e Dom José é um dos policiais que impede a livre circulação deles pela cidade (para quem não sabe, no governo Berlusconi áreas foram muradas e equipadas com cercas elétricas e torres de vigilância, e comunidades inteiras Romanis não puderam sair desse espaço).

Mas dessa vez Carmen não se limita a fugir de Dom José. Ela lhe enfrenta e, como último ato, ela o mata a tiros.

E nessa hora o pior do machismo misturado com o anticiganismo vieram à tona.

A mudança custou ao diretor vaias de parte do público, ameaças nas redes sociais e lógico que apareceram os puristas de cultura que argumentam que o politicamente correto não pode mudar o fim de uma obra eterna. Até colunas em jornais “alertaram” para o perigo que pode representar para um cidadão italiano se Romanis entenderem que podem reagir dessa forma.

Segundo o Diretor Leo Muscatto, sempre lhe incomodou que o público acompanhe as agressões a Carmen (em algumas cenas ela aparece sangrando) e mesmo assim aplauda o fato de ela ser esfaqueada por um homem que demonstra todo o perfil de agressor de mulheres.

Leo ainda ressaltou que o público solidarizava-se ao “martírio ” de Micaela, por ter sido abandonada pelo noivo (noivado este que começa unicamente por uma carta aonde a mãe de Dom José exorta o desejo da união de ambos), porém parece imune a cenas em que Carmen sofre agressão.

Seria essa mais uma confirmação de que de alguma forma o sofrimento de minorias étnicas não comove o público em geral? Seria também uma confirmação que secretamente, no imaginário comum, uma mulher que vive seu afeto e sua sexualidade como lhe provém merece ser espancada e até morta?

Alguns afirmam que Carmen matar Dom José também não está certo, e seria uma violação de direitos humanos. Mas será Carmen, cigana e mulher, menos humana, merecendo o que padece? O que a reação em relação à epopeia de Carmen em 1795 e 2018 tem em comum?

Passaram os séculos e ainda queremos que mulheres sejam punidas por ousar ser quem são.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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