Nascida numa família negra da Zona Leste paulistana, criada ao lado de 6 irmãos, Raquel Souzas foi a primeira da família a entrar na universidade. E não foi em qualquer uma. Após terminar a educação básica na escola pública, teve vários empregos, fez cursinho pré-vestibular e foi aprovada no curso de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo (USP). Depois do bacharelado, vieram a licenciatura, uma especialização em Saúde Pública, mestrado e doutorado na área pela mesma universidade. O tema de estudo foi o mesmo desde o início: relações raciais e direitos reprodutivos.
O curso superior nunca foi uma escolha fácil para mulheres como Raquel, ou para meninas como ela foi. Hoje professora associada da Universidade Federal da Bahia, ela lembra que não instituições privadas não eram uma possibilidade, e o esforço não estava apenas em entrar, mas em permanecer no curso, com menos horas disponíveis para trabalhar, custos de transporte, alimentação, apostilas.
“Tinha que escolher muito bem, calibrar suas escolhas, porque era um investimento muito alto”.
Apesar de as cotas terem vindo bem depois do seu tempo de estudante, a pesquisadora afirma que sempre esteve apoiada em projetos que a incentivaram na carreira acadêmica, sendo bolsista do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), e de uma antiga organização chamada Fala Preta. No mestrado e no doutorado, foi bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “Sou filha das universidades públicas e das possibilidades que elas forneciam”.
Com 57 anos, ela relata que viveu no período da redemocratização do Brasil, muito engajada politicamente no debate racial, busca por participação política e do direito ao voto. “Tinha um transbordamento de ideias, de construção de utopias, de projetos políticos, e isso foi muito importante para eu visualizar um projeto acadêmico”.
“Eu via a questão social como um problema que não só o meu desenvolvimento, mas o das meninas iguais a mim: negras, que cresceram na zona leste, não tinham nenhum tipo de herança ou de patrimônio. Meninas que tinham que fazer escolhas também do ponto de vista reprodutivo”, relata.
De fato, a vida universitária era quase uma fantasia para garotas como Raquel, com irmãos mais velhos que seguiram para o mundo do trabalho antes mesmo de terminarem a escola. “Eles voltavam quando ficavam desempregados, como uma forma de se reciclar e conseguir um novo emprego”.
O impulso para a vida científica não veio automaticamente com a entrada na faculdade. Ao sair do bacharelado, através de relações construídas na universidade, teve a chance de cursar especialização em saúde pública que definiria um caminho profissional totalmente novo, e antes parecia impossível. “Fui traçando um projeto de vida e um projeto acadêmico. Como mulher negra, não recebi uma herança, uma benção monetária. Recebi um conjunto de problemas com os quais eu tive que lidar”.
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Pensar soluções dessa perspectiva, de acordo com ela, a ajudou a se fortalecer no percurso e se sentir capaz de tomar as próprias decisões. “Hoje eu sou professora, mas já fui consultora, só pesquisadora, já fui também desempregada. Essas experiências te trazem elementos para você construir seus projetos”.
“Precisa ser tão difícil realizar um projeto de maternidade?”
Na “Olha O Que Ela Fez!” deste mês de maio, entrevistamos a socióloga Raquel Souzas, mestra e doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP), integrante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, professora na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e na Universidade Federal da Bahia (UFBA), autora de uma trajetória consistente de pesquisa em gênero, saúde coletiva, direito à saúde, relações raciais e direitos reprodutivos. Nessa conversa, ela fala sobre suas impressões de pesquisa, discutindo o peso da maternidade para as mulheres de baixa renda, e abordando como as questões de raça, classe e gênero moldam as experiências na hora de maternar.
AzMina: omo o lugar da maternidade esteve representado em suas pesquisas sobre a saúde reprodutiva das mulheres de baixa renda?
Raquel Souzas: A maternidade, no caso dessas mulheres, ela toma o centro da vida. E ela para de estudar, de trabalhar, ou ela só volta a trabalhar para cuidar (financeiramente) dos filhos. Ela muda toda a trajetória de vida dessas mulheres, que já é atravessada pela precariedade. O trabalho não é suficiente, a creche não tem vagas, faltam condições de vida que viabilizem a maternidade de uma forma mais livre.
AzM: quanto dessa centralidade maternal é opção?
RS: A escolha reprodutiva às vezes não é plena. A maternidade acontece na vida das mulheres sem acesso a contraceptivos, a um planejamento familiar. Não é que elas parem de sonhar ou de fazer outras coisas, mas a maternidade ocupa a vida dessas mulheres por muito tempo, até que o filho tenha certa autonomia. Só aí ela consegue ir para o trabalho, encampar outras atividades. Os projetos pessoais vão ficando para trás.
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RS: A maternidade é um evento muito mais importante na vida das mulheres do que na vida dos meninos. Às meninas é dado o trabalho de cuidar, de resolver, de administrar sua capacidade reprodutiva, essa habilidade do seu corpo que surge já na segunda década de vida já engravida. Uma menina de 11, 12 anos, já pode engravidar. Mas qual a maturidade, quais as condições reais dela para lidar com a maternidade sozinha.
Esse potencial (de gestar) é uma coisa importante, e pode ser um projeto das meninas, uma escolha. Mas existem certas condições com as quais essas meninas vão ter que lidar. Mesmo sendo o filho desejado, o peso das obrigações é enorme. A menina engravidar é um problema da sociedade, e não da menina. Se não houver alguma forma de educação, de formação, como ela vai lidar com essa gravidez? Precisa ser tão difícil realizar um projeto de maternidade?
AzM: De alguma forma, é possível fazer uma analogia da sua fala com a questão racial?
RS: Não me atrevo a comparar, porque a maternidade é compartilhada, digamos assim. Engravidar e maternar é algo presente em todas as mulheres brancas, negras, indígenas, de todos os lugares, na idade reprodutiva. E mesmo as que não podem gestar tem tecnologias que as apoiam. Mas pensando na questão racial do ponto de vista interseccional, esse problema é, como dizem algumas feministas, submetido a muitos atravessamentos. São formas de violências múltiplas, de classe, de gênero e de raça. Esses problemas colocam as mulheres negras numa posição de desvantagem que, em termos coletivos, é brutal.
AzM: Na sua pesquisa de doutorado, você faz um recorte racial entre mulheres negras e brancas. O que emerge daí?
RS: A primeira coisa que dá para ver é (que) as mulheres negras, em termos coletivos, tem uma experiência de discriminação salarial. (Na amostra) tem mulheres que avançaram muito em termos de formação, mas ganham muito menos do que mulheres brancas. São mulheres de escolaridade superior, que rompem com expectativas de que seriam empregadas domésticas… Tenho médicas no meu conjunto de entrevistadas, sociólogas, com mestrado e doutorado, mulheres negras que avançaram muito na escolaridade, mas não receberam a devida recompensa. Muito pelo contrário, receberam discriminação. Você fura todos os obstáculos, mas quando chega lá, não recebe recompensa.
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AzM: E sobre escolhas na maternidade: qual foi a sua?
RS: Eu não tenho filhos. Eu tenho oito sobrinhos.
AzM: E você acha que sua reflexão acadêmica faz parte dessa decisão?
RS: A carreira faz parte dessa decisão, era uma prioridade. Eu queria, mas imaginava: “quero que meu filho tenha com quem contar além de mim”. Falo para minhas sobrinhas: “tenha filho logo, não fique esperando muito”, porque depois vai ficando mais difícil do ponto de vista biológico. E não existe isso de você ter filhos (sozinha). O filho vai querer saber quem é o pai, e há ferramentas que vão colocar essa pessoa na sua vida de volta através do filho. É uma conta que vai ficando complicada à medida que você vai amadurecendo.