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12 de abril de 2018

Você pode estar magra e ainda assim não ter coragem de ir à praia, não se amar

"É preciso ter uma relação com a gente para além da balança, e que é muito difícil entender isso em uma sociedade que nos ensina, desde meninas, que o importante é ser magra", escreve Néliane Simioni.

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Néliane no igarapé de Alter do Chão/Arquivo pessoal

Quem senta no Divã de hoje é a Néliane Simioni.

Ensaio há pelo menos 398 dias para começar este texto. O que está por vir também é ensaio; mais uma tentativa de me pertencer ou, ainda, a eterna continuação de quem sou.

Seis de dezembro de 2016 ficou marcado em mim como o dia do divórcio. Sem escolha, foi necessário retirar o meu anel. A obrigação da separação chegou sorrateira, mas rapidamente tirou-me o apetite. Fiquei fraca, minha alimentação foi reduzida a pequenas porções de caldos, comia forçada para me manter relativamente bem. Foram dois meses assim.

Tudo começou com uma dor constante no estômago, que fingi não ser comigo. Passei a ficar enjoada e vomitar após as refeições. Percebi que com o alimento sólido era pior, então fui negligente com minha saúde e passei a comer menos e beber mais (inclusive álcool).

O que mais aconteceu nesse período? Emagreci. Muito. Eu não tinha sinais de melhora, as dores aumentavam e chegavam os elogios: ‘Uau, como você emagreceu’; ‘Amiga, me passa a dieta’; ‘Néli, você está mais linda que nunca.’

Eu estava doente e sabia disso. Tudo o mais era confusão, que se acentuava a cada fala nesse sentido.

Não teve jeito, tive de encarar o Dr. Alcide mais uma vez. ‘Vai ser só uma úlcera.’ Não era (que bom?!). O exame de ultrassonografia mostrou que o problema foi ocasionado pelo anel que estava em meu estômago desde 2007, inserido em mim durante um procedimento cirúrgico bariátrico.

—  O anel da redução se mexeu e está impedindo que os alimentos passem pelo seu estômago.

‘Que  caralho um anel que está comigo há dez anos se mexe?! Como isso é possível? Poxa, logo agora que estava em paz com o meu corpo? Acabei de escrever o Gorda (Nota da Redação: o ‘Gorda’ foi um texto escrito por Néliane como trabalho de conclusão de curso de sua pós-graduação em Jornalismo Literário, em que ela conta sua jornada desde a bariátrica em 2007, quando perdeu 60 quilos, até o ganho de peso novamente, com altos e baixos tanto emocionais quanto na balança), viajei sozinha para Belém e foi maravilhoso, humm… altos crushs, humm… acho que está rendendo com fulano.’

— Precisaremos fazer uma nova cirurgia, desta vez para retirar o anel do seu estômago.

— Me promete que não vai deixar uma cicatriz em cima da minha cicatriz?

A cirurgia durou mais tempo que o esperado, porque Dr. Alcide acatou o pedido. Desta vez, o procedimento foi realizado por um endoscópio. Quatro furinhos no abdômen e uma câmera de alta resolução.

Foi difícil para o médico encontrar o anel perdido em meu estômago desta forma, mas ele não recorreu ao bisturi para abrir o tecido de minha barriga — e o meu corpo — além do necessário.

Quando vi o pedacinho de silicone que causou tamanho transtorno, não acreditei. Que belo filho da puta! E o pensamento não ia além. Era confusão, ansiedade. Mas, gente, como é bom emagrecer! Como é bom se sentir magra! Como é bom falarem que você está gostosa! Ai, que delícia! É CLARO que eu usufruí de tudo isso. Vestidinho novo, cintura marcada, altas selfies, viva a pegação.

Só que ‘tudo isso’ não aliviava paranoia nenhuma. Eu estava inquieta com minhas contradições. 

Lembro que na virada de 2016 para 2017 invoquei duas palavras como mantras para os próximos 12 meses: autocura e amor próprio. Como geralmente acontece, a gente não sabe, mas no fundo sabe.

Para entender, precisamos falar especificamente sobre corpo. Sobre quilos.

Escrevi o Gorda em 2016. O último ponto final do texto foi colocado em junho, por uma mulher de 1,73m e cerca de 100kg. Isso mesmo, três dígitos, o meu peso da época. Fiquei doente pouco tempo depois, em setembro.

Quando fui operada em dezembro para retirar o anel que havia saído do lugar, a balança marcava algo próximo a 87kg. Chegou janeiro, vida que segue pós-cirurgia, e eu estava dedicada a procurar o meu ‘problema’; o desassossego não dava trégua. Passei a ser classificada como magra pelos amigos e conhecidos, mas eu não sabia mais quem era.

Sessões de terapia, idas ao Grupo MADA (Mulheres que Amam Demais), encontro de histórias curativas para mulheres, oráculo das Deusas, livro Mulheres que Correm com os Lobos, tudo. Em um único mês, usei todas essas ferramentas para descobrir a resposta.

Só que lembram que eu achava que estava rendendo com um fulano? Pois bem, perguntas erradas. Todo o meu foco estava no fulano e, mesmo com todas essas práticas e me vasculhando, a possível relação desandou. Eu, semimagra, rejeitada.

Bom, esse trecho aparentemente sem pé nem cabeça é para dizer que você pode estar magra e ainda assim não se amar. É para dizer que você pode estar magra e ainda assim repetir padrões de relacionamento ou de fuga. É para dizer que você pode ter o tal corpo de verão e ainda assim não ter coragem de ir à praia. Para dizer, finalmente, que é preciso ter uma relação com a gente para além da balança, e que é muito difícil entender isso em uma sociedade que nos ensina, desde meninas, que o importante é ser magra – e princesa! Afinal, o objetivo maior da mulher é encontrar seu príncipe, porém, só princesas magras conseguem conquistar o coração de um nobre cavalheiro, eles disseram.

Em 2017 também conheci um pedacinho do paraíso na Terra. Ele fica no Pará, à margem do Rio Tapajós, próximo a Santarém. Alter do Chão, o tal Caribe da Amazônia, lugar onde mais uma vez me achei e me perdi intensamente no prazo de uma semana.

No segundo dia da viagem, escolhi nadar pelada em um igarapé. Nunca meu corpo foi tão corpo como naqueles instantes. Ele refrescava-se tranquilo nas águas geladinhas de um rio que está sempre a correr, e transcendia seus 97kg de curvas, dobras, estrias, cicatrizes, celulites, pele.

Voltei no mesmo ano, em dezembro. As curvas do rio me levaram a uma retrospectiva: quem eu fui desde agosto, quando estive lá pela primeira vez, até ali. Nesse livre pensar, automaticamente fui transportada a dezembro de 2016. Autocura e amor-próprio. Me dei conta que nunca estive tão tranquila e segura. Chorei. E então fui presenteada com uma memória dolorosa. O escritor Eduardo Galeano diz que ela, a memória, guarda o que vale a pena.

Dois mil e dez, três anos após a cirurgia bariátrica, um ano após a abdominoplastia, faculdade, aula de Tópicos Especiais em Jornalismo. A atividade consistia em sentar-se com um colega e entrevistá-lo para a produção de um perfil descritivo.

—  Uma coisa que não acho legal hoje é ver mulheres gordas dançando em baladas. Não sei, acho que não encaixa…

—  Sério, Néli? Mas você era gorda e super se divertia nas festas. Você sempre dançou.

—  Eu sei, mas tenho horror só de pensar em voltar a ser daquele jeito. Acho que eu prefiro morrer a engordar. Sério, eu me suicidaria.

A sensação que tive foi a de que vivi para recordar essa fala. Que bom não ser mais essa pessoa! Que bom poder olhar com mais generosidade para mim e para o outro. Como sou grata pelo caminho percorrido, por ter tido a chance de mudar minha relação com meu corpo e com outros corpos – através da terapia, do feminismo, do contato com mulheres inspiradoras, das vivências afetivas e inclusive por meio das relações interpessoais.

Estes sete anos até 2017 transformaram muita coisa. Nesta segunda parte da história, também precisei tentar entender a vida que fica após perder alguém para o suicídio. Por isso, esta lembrança de 2010 dói e fortalece. 

Por fim, o tempo tem essa capacidade incrível de ensinar, mas só no tempo que ele considera o tempo certo. E ele ainda nos dá tempo de mudar, crescer, resignificar, aceitar, amar.

Olhei ao redor. Água. Água. Água. O pôr do sol no horizonte. O céu.

Expansão. Expansão é a palavra para 2018. “


Também tem um desabafo para fazer ou uma história para contar? Então senta que o divã é seu! Envie seu relato para liane.thedim@azmina.com.br 

 

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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