“No domingo do primeiro turno das eleições, acordei chorando. Achei que não conseguiria sair da cama pra votar. Um sentimento de impotência, desespero e tristeza se apossou de mim, e não entendi muito bem de onde veio.
No dia anterior, eu estava conversando muito racionalmente com um amigo, explicando que, do meu ponto de vista, a resistência anacrônica da gente velha reacionária era um processo natural. Mesmo com Bolsonaro sendo eleito, era esse tipo de embate que movimentava culturalmente a sociedade.
Às vezes, eu disse, nosso imediatismo millennial juvenil não nos deixa enxergar que as coisas estão melhorando, e muito, e rapidamente. Mesmo uma derrota nas urnas poderia ter consequências positivas, porque o combate nos fortalece.
Mas, embora eu seja uma das pessoas mais otimistas que conheço – e gosto de acreditar que meu otimismo é bem embasado -, há uma diferença fundamental entre o entendimento racional e a experiência. Uma coisa é racionalizar a possibilidade da eleição de Bolsonaro; outra é acordar e absorver o que isso significa, na prática.
Percebi que eu estava com muita raiva. Porque empatia é sentir, de verdade, a dor que não é nossa. Não entender: sentir. Fiquei pensando nos relatos de amigos próximos, de que estavam com medo de serem espancados na rua, porque isso já tinha acontecido no passado, mas agora as ameaças não eram mais veladas – eram gritadas com orgulho.
Andar sozinho sendo alguém fora do padrão parece pior do que nunca. Andar sozinha sendo mulher, também.
Quando dizemos isso, parece mentira, porque todo mundo que não vive debaixo da nossa pele deve imediatamente imaginar todas as vezes em que já cruzou com um grupo de mulheres ou gays andando na rua durante a noite, sem qualquer preocupação na cabeça. É triste, é muito triste que nosso medo seja tão naturalizado. Ele não é aparente, é instintivo.
A terapia me ensinou a identificar os gatilhos dessas explosões emocionais, mesmo que a vontade imediata seja a de escrever um textão, xingar todos os caras fazendo piada com ir pro Gulag e dizer que não entenderam nada, porque para nós, mulheres, o buraco é muito mais embaixo. Nossa vida já é uma luta diária e nosso desespero é que o pouco que conquistamos nos seja tomado. Nós não queremos ser mortas.
Eu observo essa raiva e fico triste, porque sei de onde ela vem. É o desespero da impotência. Essa raiva não vem dos caras que tentam ajudar e metem os pés pelas mãos; eles são nossos aliados. Mas, se o inferno está mesmo cheio de boas intenções, certamente deve haver um departamento exclusivo, atolado até a boca, de homens querendo consolar mulheres injustiçadas. Porque, no fim do dia, realmente: eles não entendem nada.
Não entendem porque empatia é sentir a dor do outro como se fosse sua. Não entender: sentir. Um homem não consegue imaginar o privilégio que é conseguir pensar em qualquer outra coisa. Eu sinto muita raiva, porque é injusto, mas sei que minha raiva não é dos indivíduos. Então observo e fico em silêncio. Observo e espero passar.
No domingo de eleição, um casal de amigos se ofereceu para me acompanhar até minha zona eleitoral. Votei e depois paramos pra comer pastel e conversar um pouco. Não vou repetir as considerações políticas, porque não é o objetivo deste texto, mas uma das coisas que minha amiga disse foi o seguinte:
“Meu pai sempre foi um cara meio conservador. Nunca tipo Bolsonaro, jamais… Ele tem duas filhas! Ele não gostava de gays, mas se sentasse um cara gay do lado dele, ele nunca faria nada; só ia fazer uma piadinha qualquer e pronto…”
“Sim! Como a maioria das pessoas da geração dele…”
“É. Só que de uns meses pra cá, eu não sei o que aconteceu, mas parece que ele virou outra pessoa. Ele ficou homofóbico, mesmo. Fala em bater, em violência; não reconheço mais ele. Parece que foi uma lavagem cerebral.”
E eu, a profeta do pragmatismo otimista, com a cartilha da neurociência evolutiva na ponta da língua, pronta pra qualquer discussão, não soube o que responder.
Mas no desespero aterrador, o consolo é que nossa dor não é solitária.
A gente come pastel, faz piadas e conversa amenidades, mas o que acalma de verdade é saber que o medo nas entrelinhas é compartilhado. É o medo que faz a gente se unir.
Eu já preciso abrir mão de tanta coisa por conta do medo. É tão injusto que eu precise colocar mais medo na conta e ainda assim superar todo mundo em volta de mim – tecnicamente, socialmente, hard skills, soft skills. Preciso crescer, liderar e engolir tudo em volta, porque esse é o único jeito de transformar as coisas pra melhor.
A gente tem que ter o dobro de energia, o triplo. Não é justo, mas dizer que não é justo é “mimimi”. Então a gente tem que engolir a raiva e o choro e ser melhor, mesmo não tendo o privilégio de fazer isso de cabeça fria; tem que chorar no banheiro quando parece que vai explodir, lavar o rosto e aí então ser melhor ainda.
Meu irmão, que está em Portugal, conta que o pessoal por lá diz que nós, os brasileiros, não tínhamos passado ainda por um momento de verdadeiro horror. Até mesmo nossa ditadura terminou com panos quentes; toda a nossa história aconteceu na base do acordo de elites, com o povo assistindo.
Talvez a gente precise passar por esse processo. Na verdade, não existem respostas simples; nem existem respostas. Mas eu me lembrei das palavras que uma amiga disse, um tempão atrás: “É possível aprender pela dor e pelo amor, mas, infelizmente, a maioria das pessoas só aprende pela dor.”
Empatia é sentir a dor do outro como se fosse nossa, mas, infelizmente, a maioria das pessoas só consegue sentir a sua própria.
Pra mim, só existe uma opção.
Lutemos, mas com inteligência, dignidade e amor, sempre amor.”
Quem sentou no Divã de hoje é a Jessica Tarasoff.