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16 de março de 2017

Por que o atendimento especial a crianças vítimas de violência é um grande avanço

Projeto determina que depoimento de testemunhas seja tomado por profissional com formação específica para evitar constrangimento. Agora falta o 'sim' dos senadores

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pixabay.com

Por Ana Maria Drummond

aprovação neste mês, pela Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei (PL) 3.792/2015, vai alterar radicalmente para melhor o modo como as meninas vítimas de violência física, psicológica e sexual serão atendidas no ambiente institucional do Estado brasileiro. O projeto cria um sistema de garantias para crianças e adolescentes testemunhas ou vítimas de violência, determinando que União, estados, municípios e Distrito Federal criem políticas públicas para resguardar seus direitos e protegê-las de situações de violência. O texto agora segue para análise do Senado.

Na prática, entre outros aspectos, o projeto evitará que as vítimas de violência sofram com o excesso de exposição à situação que as acometeu, com dolorosas repetições desnecessárias do fato ocorrido. Atualmente, a vítima narra inúmeras vezes o que aconteceu, primeiramente na escola, depois no conselho tutelar, nos órgãos de saúde, na delegacia e, enfim, no Judiciário. Uma grande e doída peregrinação.

O projeto aprovado também detalha o procedimento do depoimento especial, o grande coração da proposta. Isso significa que o depoimento da vítima será tomado por um profissional com formação específica e sensibilidade para permitir que ela narre o fato ocorrido sem ter que ouvir perguntas absurdas que a constrangem e a culpam.

Entre as aberrações que hoje acontecem nos casos de violência sexual, são comuns perguntas do tipo: “Qual roupa você estava usando?”; “Se não gostou, por que não gritou?”, entre outros absurdos que sempre têm a intenção de deslegitimar o relato e transformar a vítima em culpada pela própria violência sofrida. O projeto de lei propõe que o número de vezes em que a menina precisa falar sobre o que houve diminua de quase dez para duas vezes. O mesmo procedimento deve ocorrer na fase do Judiciário, com a vítima falando em ambiente separado da sala de audiência, transmitido por circuito fechado de TV e gravado, para acompanhar o trâmite do processo e reduzir o número de vezes em que a criança precisa falar do fato ocorrido.

O texto aprovado é fruto de um longo trabalho da Childhood Brasil que, desde 2007, questiona e propõe que a escuta de crianças e adolescentes seja realizada de forma protegida. Em 2008, quando publicou o estudo Depoimento sem Medo (?) Culturas e Práticas Não-Revitimizantes: Uma Cartografia das Experiências de Tomada de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes, a organização tinha o claro propósito de pautar este tema no país e contribuir para influenciar políticas públicas. Na ocasião, a organização realizou um mapeamento inédito das melhores práticas em tomada de depoimento especial de crianças e adolescentes no mundo.

Para alcançar essa conquista, nos últimos anos reforçamos a importância da nossa atuação conjunta com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Frente Parlamentar Mista de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Segundo dados do Disque 100 de 2012 e 2013, as meninas representam 49,5% das vítimas da violência psicológica, 48,9% das vitimas de violência física e 71,8% das vitimas de violência sexual. Já pelos dados do Sistema Viva/SUS nos mesmos anos de 2012 e 2013, as meninas são 70,1% das vítimas da violência psicológica, 53,8% das vítimas de violência física e impressionantes 83,5% das vítimas de violência sexual. A maioria tem até 17 anos de idade.

Ainda de acordo com os dados do Disque 100, a cada hora uma criança ou adolescente é vitima de exploração sexual, sendo que a estimativa é que menos de 10% dos casos sejam notificados às autoridades.

No caso do estupro, estima-se, segundo pesquisa do Ipea publicada em 2014, que no mínimo 527 mil pessoas são anualmente vítimas desse crime atroz no Brasil, em que 89% das vítimas são do sexo feminino e 70% são crianças e adolescentes.

A violência sexual que tanto nos choca não se origina em fatos isolados — muito pelo contrário, ela integra um terrível cotidiano que só será resolvido com a adoção de três estratégias básicas: proteção legal, políticas públicas (que incluem o debate da questão de gênero nas escolas) e mudança cultural, no sentido de contrapor a ideologia machista com uma nova concepção de masculinidade.

A aprovação do PL 3.792/2015, portanto, é um passo extremamente importante ao representar o empoderamento da sociedade para enfrentar a cultura da violência sexual e outras formas de violência contra crianças e adolescentes. Outros passos ainda precisam ser dados. O próximo é no Senado Federal.

Ana Maria Drummond é diretora-executiva da Childhood Brasil, organização brasileira que há 17 anos trabalha para influenciar a agenda de proteção da infância e da adolescência no país. Integra a World Childhood Foundation, instituição criada em 1999 pela rainha Silvia, da Suécia, para proteger a infância e “garantir que as crianças sejam crianças”

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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