Quem senta no Divã de hoje é a Ângela Lima*.
“Eu tenho aula com um professor que assedia mulheres. Eu tenho aula com um professor que assedia mulheres. Achei importante dizer mais uma vez. A aula é bem bem ruim. Patética, na verdade. São duas horas por semana ouvindo sobre como sua carreira foi incrível. E, toda vez que olho pra ele, qualquer que seja o contexto, a primeira coisa que penso é: ele assedia mulheres.
Não nos basta não ser reconhecidas, receber salários menores, ter uma de nós estuprada a cada 11 minutos e ser oprimidas em todas as esferas existentes. Também somos obrigadas a conviver diariamente com nossos próprios agressores.
Mas ter aula com este professor não é o que mais me incomoda.
Das 30 pessoas em minha turma, apenas 10 são homens. Um terço. Quando o cara que assedia mulheres se tornou nosso professor, eu ouvi de um amigo: ‘Quem sabe a aula é boa? Acho que pra tornar essa experiência menos dolorosa a gente tem que separar o pessoal do profissional.’
Semanas depois, o mesmo amigo disse algo amigável sobre ele. Amigável. Ele disse algo amigável sobre um professor que assedia mulheres. Não lembro a frase, mas lembro perfeitamente como meus braços tremeram, meu estômago mexeu e um impulso de gritar subiu do meu peito para minha garganta. O nome disso é raiva.
Eu falei o quanto era agressivo ouvir isso, ele me disse mais uma vez que ‘devemos separar a privada da pessoa do profissional.’
Se trata de um professor que assedia mulheres, eu só não consigo esquecer esse ‘detalhe’. Eu não consigo separar um assediador de seu trabalho. E eu tenho raiva de quem consegue. Porque pra mim, mulher, estudante, feminista, sequer pensar na hipótese de separar o pessoal do profissional dói. E dói muito.
Eu não quero fazer isso e não quero que ninguém no mundo faça.
O que mais existe são homens que assediam, que estupram, que agridem, que contribuem para que a vida de mulheres seja um inferno, mas são ‘ótimos profissionais’. E o mundo olha para essas caras dia após dia e continua enaltecendo-os. Dizendo o quão geniais são, o quanto suas obras são incríveis. E as mulheres que foram assediadas, estupradas, agredidas, tiveram a vida transformada em um inferno, são esquecidas.
Naquela noite, meu amigo me dizia como para ele era impossível sequer pensar em condenar o trabalho de um cara pela sua pessoa, “então se um homem faz uma coisa errada eu não posso gostar de nenhum texto que ele escreveu ou filme que fez?”. Ouvi essas perguntas como se eu fosse a pessoa mais louca que já existiu.
Ele continuava tentando me explicar como se sentia, e como para ele isso era irracional, e prejudicial, e não fazia nem um sentido. E quanto mais eu escutava com mais raiva eu ficava. Eu fico tão enfurecida com essa fala. Eu me sinto pessoalmente ofendida.
É um homem que assedia mulheres.
Isso deveria vir antes de qualquer coisa. Sempre. E na minha mente é extremamente injusto que ele não consiga pensar assim, como eu. Eu sei que ele é não é mulher. Eu sei que quando anda na rua à noite ele não sente medo de ter seu corpo violado. Eu sei que quando olha nos olhos de um assediador não sente o mesmo que sinto.
Mas o fato de ele não conseguir repudiar automaticamente o trabalho de um cara que assediou uma mulher me deixa furiosa. Eu não consigo nem pensar em tentar entendê-lo. Isso pra mim parece algo tão injusto e tão agressivo que eu não quero entender. Eu não quero entender como ele se sente. Eu não quero ter que continuar ouvindo.
Homens recebem um passe livre para serem assediadores porque sabem que socialmente suas obras continuarão sendo bem vistas. Mulheres não têm essa sorte. Quando se trata de produções do gênero feminino a primeira coisa a ser feita é vasculhar o privado de cada uma, procurar um erro, um detalhe.
Durante toda minha vida eu tentei pensar de outro modo, entender outra realidade, ter empatia por diferentes aflições. Mas, pela primeira vez, não quero entender o sentimento de alguém. Por que é muito, muito doloroso.
Foi naquela noite que eu senti na pele a desigualdade de gêneros. A incapacidade dele de entender algo que pra mim é tão forte e tão vivo nunca poderia conviver pacificamente com a minha rejeição em ter empatia. Isso é desigualdade. É sentir o mundo de outra forma e nunca ser capaz de compreender o seu oposto.
Eu não quero justificativas. Não quero explicações. E não quero separar a vida privada de um homem de sua profissão. Nunca.
*Pseudônimo
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