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6 de maio de 2021

“Meu filho passou pela transição de gênero no isolamento social”

“Além de lidar com dois empregos, uma criança, os cuidados da casa, os cuidados comigo, que tive Covid, havia a questão de gênero”, conta Danielle Gomes

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filho trans pandemia
Arte: Bárbara Miranda/AzMina

“‘Por que eu sou quebrado?’. ‘Por que você não pediu um menino?’. Essas questões começaram a surgir do meu filho nos primeiros meses da pandemia, quando começamos a ficar os dois em casa convivendo intensamente. Em alguns dias, enquanto eu trabalhava, ele pegava a tesoura e cortava um pouco do cabelo aos pouquinhos, até que ficou curtinho.

Isso foi em setembro, quando ele chegou para mim e disse: 

– Se eu for um menino, você vai me amar?
– Eu odeio tamarindo e se você fosse um tamarindo, eu ainda ia te amar. 
– Dentro de mim, eu sou menino. Se você quiser, pode me expulsar de casa.

Ele tinha só seis anos de idade, na época. E então a gente chorou. 

Mas quando esse momento chegou, não foi uma surpresa e eu não estava despreparada. 

A verdade é que desde pequeno ele indicava isso. Com um ano e oito meses, já dizia que era um menino. Desde sempre, a gente, eu e o pai, a gente tinha essa sensação de que toda sua identificação e subjetividade era de menino 

Quando ele tinha três anos, eu me separei do seu pai e por causa do divórcio, coloquei ele na terapia. E em poucos meses, a questão da transgeneridade dele era algo que a gente já discutia entre a gente e com a psicóloga. Mas decidimos deixar para que ele encontrasse o próprio tempo. Fomos deixando acontecer. A gente não estimulou, nem proibiu, só deixou a vida ir seguindo um fluxo. E o tempo dele chegou na pandemia. 

O processo dele 

Sou professora e farmacêutica e trabalho em dois lugares, trabalhando das sete da manhã às dez da noite. Então ele sempre ficou na escola período integral. Eu e o pai dividimos a guarda meio a meio, então alguns dias o pai ficava com ele a noite, em outros a madrinha e eu pegávamos depois do trabalho. A gente não tinha muito tempo. 

Quando veio a pandemia, eu passei a trabalhar de casa e ele a ter aulas remotas. Como o pai dele é linha de frente da Covid, Duda ficou muito tempo em casa e muito tempo comigo. Era muito comum eu terminar de dar aula e, quando via, ele estava lá na rede, pensando. 

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De maio a setembro, vivemos esse período do questionamento, aí depois disso, com o cabelinho curto, teve esse momento de se dizer menino. Eu vinha observando que antes havia um certo rancor. Será que é pela pandemia? Será que é porque está trancado em casa? 

Foram dias difíceis, em que além de lidar com dois empregos, uma criança, os cuidados da casa, os cuidados comigo que tive Covid em junho e levei uns três meses pra me recuperar, tinha toda essa questão e esse rancor, que se direcionava a mim. 

Mas era uma fase dele se entender. Tenho um amigo que é um homen trans e ajudou muito nesse processo. Porque Duda achava que era único no mundo, que só ele passava por isso. Quando os dois se encontraram, foi a primeira vez que Duda disse que o nome dele era Eduardo, fora de casa. 

Eu e o pai acolhemos tudo. Nunca houve da nossa parte nenhum tipo de querer curar o que não é doença, de querer proibir, inibir, nada disso. As coisas foram acontecendo, ele ia trazendo as demandas pra gente. Foi simples. Não foi sem dor, mas não foi sofrido. 

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Depois, veio a fase de contar para as pessoas. Em dezembro, no Natal, minha irmã e minha mãe vieram e fizemos uma ceia em quatro e ele disse pra minha irmã: tia, meu problema é que eu sou um menino e você vai precisar me aceitar do jeito que eu sou. Ele tem seis anos e parece um velho, às vezes. 

E teve o momento da gente conversar na escola. A escola é maravilhosa. inclusive quando eu conversei com a psicóloga da escola, ela falou: “a gente sempre soube”. E contou que mudaram o jeito de mandar bilhetes para os pais, ou as roupas de festa, por causa dele. Ele estuda lá desde os sete meses. 

Já com a família, amigos e conhecidos, foi bem dividido. Há pessoas que cortaram relação, se afastaram da gente. E a gente deixou, quem quer ir que vá. Não estamos na agonia de querer que todo mundo seja forçado a acolher. Porque é melhor que se afaste que fique constrangendo ou agredindo.

 Luto da “mãe de menina”

Desde sempre ele foi acolhido com muito amor, mas houve uma dor, houve um luto pelo fim da minha construção subjetiva de “mãe de menina” e a transição, porque a gente acaba transicionando junto.  E eu tive que ir mudando junto, também para que não houvesse aquela aceitação vazia de oba oba, de tudo bem botar minhas dores debaixo do tapete.

Então me permiti viver esse luto, porque queria viver de fato essa ida e essa chegada. 

Em dezembro, ele viajou com o pai e eu chorei meu luto nesses dias. Precisei fazer isso. Sempre sonhei ser mãe e seu nascimento foi uma realização desse sonho. E nosso laço era muito forte, minha filha amigona, erámos muito parceiras. E continuamos muito parceiros. 

Mas eu acho que existia uma construção na minha cabeça, que se desfez, precisou ir embora pra ele chegar. Assim, pude me abrir completamente para ele. No fim, para além de meia dúzia de pronomes e umas peças de roupa, quase nada mudou. Nem o cheiro do cabelo, nem o som do sorriso, nem a doçura da nossa amizade… Meu menino sempre esteve ali.”

O relato de Danielle foi dado a Helena Bertho


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* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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