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cae vasconcelos
10 de agosto de 2023

A desastrosa entrevista do Fantástico com Elliot Page

Um manual do que não fazer ao contar histórias de pessoas trans

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Montagem com Elliot Page. Em primeiro plano, o ator usa moletom e boné vermelhos. Sua pela é esverdeada e ele usa um óculos de armação preta. Atrás dele, existe uma bandeira trans, nas cores azul, rosa e branco, e à esquerda, podemos ver a logo do programa "Fantástico" em baixa saturação.

Costumo assistir ao Fantástico sempre que dá. É um programa que gosto. Mas, domingo retrasado, quando anunciaram a entrevista com Elliot Page, logo pensei: lá vão eles errar de novo. Dito e feito. p

O primeiro problema começa quando Elliot é apresentado como “ator trans”. Elliot Page é muito mais, ele é um dos maiores nomes do audiovisual mundial. Dos seus 36 anos de vida, mais de 20 foram dedicados à arte. Sua versatilidade em frente às câmeras lhe rendeu 76 indicações a prêmios, dos quais ganhou 31.

Elliot fez “Menina má.com” em 2005, “X-men” em 2006, “Juno” em 2007, “Amor por direito” em 2015, “Tallulah” em 2016 e muitos outros. Em séries, ele estrela “The Umbrella Academy” desde 2019. Também é produtor, diretor e acabou de lançar seu primeiro livro. Aliás, foi “Pageboy”, livro de memórias do ator, que originou a entrevista. Apesar de sua transgeneridade ser importante, ela não o resume. 

Imagens desrespeitosas

O segundo ponto, e mais grave, é que durante os seis minutos de reportagem, somos impactados com fotos de Elliot de antes da transição. São imagens de diversos momentos da vida dele antes da transição, acompanhadas de uma narração do repórter citando o próprio livro de memórias do ator: “Precisava evitar meu reflexo, não conseguia olhar as fotos, porque o que via nunca era eu de verdade. Aquilo estava me adoecendo”.

É muito violento. E essa violência não é só contra Elliot, mas contra toda a população trans, já que nem um ator renomado e premiado consegue escapar. As palavras de Elliot são lidas, mas ignoradas, desrespeitadas ao passo que as imagens estão ali. 

Outro trecho gravíssimo é o uso do pronome feminino ao falar dos papéis feitos por Elliot antes da transição. Uma adolescente, uma arquiteta. Sempre no feminino, gênero que podia ter sido neutralizado, usando “pessoa” como fio condutor. “Foi se despindo da imagem feminina” e “fez do guarda-roupa masculino” são algumas frases ditas pelo repórter. 

Viés único da dor

O único trecho em que ouvimos Elliot falar é sobre como sofre desde criança por ser uma pessoa trans e como, literalmente, se vê como um ET. Sim, muitas pessoas trans sofrem em diferentes momentos, porque vivemos em uma sociedade transfóbica. Tenho quase certeza de que Elliot não falou só de dor nessa entrevista, ou o entrevistador fez as perguntas só com esse viés.

A reportagem também afirma que Elliot é um homem trans, palavras que nunca saíram dele. Ele sempre disse que é uma pessoa trans e que seus pronomes são masculinos ou neutros. Trazendo pro contexto brasileiro, Elliot se vê muito mais como uma pessoa transmasculina do que como um homem trans. Mas tem diferença? Tem, e ela começa por respeitar como ele se identifica. Será que as perguntas primárias para uma pessoa trans – quais seus pronomes e como você se identifica – foram feitas por quem o entrevistou?

Para piorar mais, na metade da reportagem, um dos momentos que deveriam ser esquecidos e redimidos pela emissora é trazido à tona: a novela “Força do Querer”, de 2017. Embora a trama tenha ajudado algumas pessoas trans, violentou muitas mais com a presença de transfakes – quando atores cis interpretam pessoas trans. Toda a narrativa gira em torno do ódio que um homem trans tem ao próprio corpo, chamado no nome e pronome com os quais não se identifica.

Processo que me marcou

Essa história me pega muito, porque Elliot Page contou da sua transição perto do momento em que contei da minha. O ano de 2020 foi um divisor de águas pra mim, e ler o emocionante texto dele contando um pouquinho do seu processo me marcou eternamente. Nem eu, nem Elliot começamos nossa transição quando falamos dela publicamente, mas, dar esse passo foi muito corajoso. Nossos nomes antigos já eram conhecidos (o meu bem menos do que o dele), e um dos principais medos era saber que as pessoas o trariam de volta. Ainda bem que pelo menos isso a reportagem respeitou: Elliot foi sempre chamado de Elliot.

Mas pensar que tudo isso foi ao ar quando o “Show da Vida” começa a celebração de 50 anos é inacreditável. É meio século sem a presença de pessoas trans nesse que é um dos principais programas jornalísticos da história da televisão brasileira. São cinco décadas com reportagens reproduzindo diferentes níveis de violências contra pessoas trans, ainda que a intenção tenha sido boa. 

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Foi esse mesmo Fantástico que produziu e reproduziu uma das violências mais difíceis de ser superada. Era 2008 quando Ronaldo Nazário ganhou espaço na televisão para violentar travestis, falando delas de forma desumana e degradante ao negar que se relacionou com elas. Em 2021, ele ganhou novo espaço pra seguir desumanizando elas, dessa vez no “Entrevista com Bial”. 

Em 2019, o Fantástico também exibiu o documento com o nome antigo de uma criança trans em reportagem sobre a vida de Maria Joaquina, uma potência que temos na patinação. Fui a primeira pessoa a entrevistar Maria e sua família, pouco antes dessa matéria na Globo. Na época, ela estava sendo impedida de competir unicamente por ser uma criança trans. A repórter global ainda usa expressões violentas como “Maria nasceu no corpo de menino” para falar de uma criança de 11 anos que já havia sido violentada pela sociedade transfóbica que vivemos. 

Não é só na Globo

Infelizmente, essa falta de cuidado, de conhecimento e de sensibilidade não é exclusividade do Fantástico ou da Globo: é um reflexo do jornalismo até hoje. Era assim em 2013, quando entrei na universidade, continuou assim em 2017, quando me formei, e continua longe dos avanços necessários em 2023.

E olha que essa reportagem nem foi a mais violenta que já vimos… Ainda testemunhamos a exposição do que chamamos de “nome morto” nas reportagens, encontramos nossa imagem sempre associada à dor e violência, temos nossas potências ignoradas e apagadas. 

Uma das principais funções de um repórter é a apuração. E dentro disso está a leitura sobre o tema, o estudo, as entrevistas com fontes especializadas no assunto (e não que têm mais seguidores). Se houvesse o cuidado adequado nessa etapa, o resultado dos conteúdos feitos por pessoas cis seria diferente. 

Faltam sensibilidade e gente diversa

Tem uma coisa que não aprendemos na universidade: sensibilidade. Mas, quanto mais intersecções a pessoa carrega, mais entende sobre isso. Então, sim, um jornalista homem, cis e branco vai ter muita dificuldade em se colocar em nosso lugar e entender nossas demandas, e perceber que é possível ser violento mesmo sem querer.

Daí se prova a necessidade de termos redações realmente diversas e plurais, com mais mulheres, pessoas periféricas, pessoas trans, indígenas e muito mais pessoas negras. Eu decidi me tornar jornalista há 6 anos por não ver gente como eu nesse lugar, para colocar em nossas mãos o imenso poder de conduzir as narrativas na imprensa. O jornalismo é um dos principais algozes de pessoas trans, e escolhi um lado nessa luta.

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Hoje temos pessoas trans produzindo conteúdo educativo de graça nas redes sociais e formadas em jornalismo, ainda que muitas estejam longe das redações, e nenhuma à frente das câmeras dos programas da TV Globo.

Vamos ter que esperar mais 50 anos pra mudar isso? Se depender de mim, não. Não temos mais tempo pra esperar. A mudança precisa ser agora. O jornalismo nos deve essa reparação.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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