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24 de julho de 2023

Nunca foi sorte, sempre foi bem viver

Peço licença a Exu para elaborar sobre as práticas que fizeram mulheres negras chegarem até aqui

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Você já pensou o contrassenso que é mulheres negras serem, demograficamente, o maior grupo da população brasileira? Somos 1/3 dos brasileiros. Pensa: temos os piores indicadores sociais desde que o Brasil é Brasil. Mazelas que começaram quando o primeiro navio negreiro aportou nesta costa. Pois, 500 anos depois, as políticas de genocídio não nos exterminaram, e ainda somos a maioria. Louco, né? 

Penso em Kehinde, protagonista do romance “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves. Ela foi raptada de África ainda criança, escravizada no Brasil, comeu o pão que o diabo amassou, e ainda assim gozou a vida. Se você não leu esse livro essencial, fica a dica e uma promessa: essa coluna não contém spoilers

Basta saber que a personagem que transita entre a ficção e a realidade (inspirada na vida de Luíza Mahin, que participou da Revolta dos Malês, em 1835, e mãe do abolicionista Luiz Gama) teve uma vida interessantíssima. Fez revolução, amigos, amores, filhos, festa, macumba… foi pobre, rica, perdeu e ganhou.  

Essa personagem marcou minha vida – e de toda a torcida do Corinthians -, pois me atravessou no meio da pandemia de Covid-19. Quando a gente tava lutando pra sobreviver, literal e subjetivamente, Kehinde tava lá jogando na nossa cara que era possível viver além de sobreviver. E sabe como? Com o bem viver. 

Posso aqui trazer mil elucubrações, da literatura até as ciências sociais, para explicar o ‘fenômeno social mulheres negras’: Como vivem? Onde comem? O que fazem? Mas hoje quero falar dessa hipótese que vem da prática, da vida como ela é, a gerações e gerações de mulheres negras e indígenas. A primeira vez que ouvi falar em bem viver foi na Marcha de Mulheres Negras de São Paulo. 

O que é bem viver?

Já adianto: não é skincare – nada contra, até faço. O termo bem viver conceitua a cosmovisão (visão de mundo) de comunidades tradicionais que se organizavam a partir do coletivo, diz Juliana Gonçalves, jornalista e mestre em estudos culturais que estudou o bem viver em narrativas de mulheres negras no Brasil. “É um modo de vida que abarca a relação entre as pessoas, a natureza e o modelo econômico em sociedades que não tinham no capitalismo o único modo possível de se organizar“, explica ela, que também é membra da Marcha de Mulheres Negras de São Paulo. 

Ou seja, sobrevivemos e vivemos porque sonhamos e construímos outras possibilidades de mundo. Mas não é só sonho – o que já seria grande coisa, já que sonhar é também ato de resistência. O bem viver anuncia mais do que o mundo desejado por mulheres negras, mas também o que já está sendo construído por nós, conta Juliana. “Ele aponta caminhos sobre o que vem depois do caos.”

juliana gonçalves
Juliana Gonçalves. Crédito da foto: Arquivo Pessoal.

Na Marcha de Mulheres Negras vivemos o bem viver que desejamos todos os dias. Todo dia 25 de julho, tomamos as ruas do centro da maior metrópole do hemisfério sul para reivindicar condições de vida dignas. É luta política e momento de grande afeto. Encontramos as manas com quem construímos o ano todo. Com quem montamos cestas básicas, articulamos acesso a direitos umas para as outras, celebramos nossas vidas e conquistas, reverenciamos nossas mais velhas, cuidamos de nossas crianças, velamos nossos mortos. 

Bem viver x bem-estar 

Juliana conta que as definições e práticas do bem viver são amplas e generosas. Enquanto conceito, nasce em berço andino, de povos originários da América Latina. Há, entretanto, correspondências do bem viver em comunidades tradicionais e seus modos de organização antes da colonização sofrida tanto na América Latina quanto na África. Em sua pesquisa, que surgiu do incômodo com a confusão entre os conceitos de bem viver e bem-estar individual,  a jornalista  evidencia a grande contribuição de mulheres negras na disputa desse conceito e dessa prática no Brasil. 

O cuidado e autocuidado têm papel importante nas práticas do bem viver no país- juntos, os dois termos têm 90 citações nos depoimentos de 17 fontes  que Juliana ouviu. Mas sem papinho neoliberal, alerta Nilma Bentes, figura central no tema por aqui. “Bem viver é uma proposta para contrapor o modelo capitalista neoliberal“. 

Juliana Gonçalves explica que o autocuidado está inserido no bem viver, mas não se esgota nisso. E lembra que, no relato mítico iorubá, Oxum lava suas joias antes de cuidar de seus filhos, e nos dá uma lição valiosa sobre olhar para si também como ferramenta de emancipação coletiva. 

Bem viver é você estar saudável, ter alimento. Eu sou uma mulher de axé, sempre penso na comunidade“, disse Mãe Nilce, coordenadora nacional da Rede Nacional de Religiões Afrobrasileiras e Saúde (Renafro), em entrevista a Juliana. “Você ter um atendimento humanizado no SUS, estar bem, corpo e mente são. Não existe o problema dos outros, o problema é nosso, a dor de uma é a dor de outra“, afirmou. 

Diálogo latino-americano 

O marco do diálogo do Bem Viver dos indígenas latino-americanos com as brasileiras está na Marcha de Mulheres Negras de 2015, em Brasília, a maior e mais importante mobilização de mulheres negras na contemporaneidade. A Carta das Mulheres Negras, documento divulgado pela organização do evento dias antes de tomarem as ruas, traz a reivindicação: 

“A sabedoria milenar que herdamos de nossas ancestrais se traduz na concepção do Bem Viver, que funda e constitui as novas concepções de gestão do coletivo e do individual; da natureza, política e da cultura, que estabelecem sentido e valor à nossa existência, calcados na utopia de viver e construir o mundo de todas(os) e para todas(os). Na condição de protagonistas oferecemos ao Estado e a Sociedade brasileiros nossas experiências como forma de construirmos coletivamente uma outra dinâmica de vida e ação política, que só é possível por meio da superação do racismo, do sexismo e de todas as formas de discriminação, responsáveis pela negação da humanidade de mulheres e homens negros”.

Eu peço, então, licença poética e espiritual para Exu, orixá mensageiro e das encruzilhadas, cujo ditado popular diz “nunca foi sorte, sempre foi Exu”, para dizer também que: nunca foi sorte, sempre foi bem viver.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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