“Primeiro, você odiava os negros. Depois, você odiava judeus. Agora, você está odiando todo mundo. Então a pergunta é: quando a única pessoa que restar for você, você vai odiar a si mesmo?“. O discurso da deputada norte-americana Pam Stevenson na Câmara de Kentucky (EUA) criticando um projeto de lei transfóbico (contra pessoas transexuais) foi certeiro ao identificar um padrão histórico, em que se elege um grupo de pessoas para perseguir e culpar pelos males de uma época, criando espantalhos. A perseguição da vez são às pessoas trans.
Está em curso uma verdadeira cruzada mundial. À frente dela, a extrema-direita, grupos conservadores e feministas radicais (conhecidas como radfem). Sim, feministas – não todo o movimento, mas uma vertente dele. Parece (e é) um contrassenso para um movimento que vem, historicamente, abarcando cada vez mais pessoas e perspectivas de liberdade. Eu gostaria de dizer que essas pessoas não são feministas, mas o movimento precisa enfrentar essa contradição.
Difícil participar do mesmo clube que pessoas que estão mais alinhadas com Damares e Bolsonaro do que com Angela Davis, né? Mas é isso: a melhor maneira de não resolver um problema é ignorar sua existência e extensão.
Os maiores embates dentro do movimento feminista nasceram a partir de demandas de pessoas excluídas da categoria “mulher” – supostamente universal – em voga a cada época. Se na década de 1980 essa tensão foi protagonizada pelas mulheres negras, que enfrentam, além do sexismo, o racismo; nos últimos anos ela é protagonizada principalmente pelo transfeminismo, que considera “mulher” uma categoria construída socialmente, incluindo, assim, mulheres trans e travestis.
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Mundo invertido
O movimento feminista não é coeso e, por isso, abarca várias linhas de pensamento. Elas divergem sobre como enxergar a origem do problema e como enfrentá-lo, tensionando o movimento com contradições e provocações. Mas no último grande avanço do movimento, com as feministas negras, a reivindicação era de inclusão, e agora parece que vivemos em um mundo invertido, e as radfem querem excluir.
Um termo foi cunhado para classificá-las: TERF. É a abreviação para feminista radical trans-excludente, do inglês trans-exclusionary radical feminist. Defendem o uso da genitália para classificar as pessoas nos gêneros masculino e feminino e, portanto, são favoráveis à exclusão de mulheres trans e travestis da categoria mulher e dos direitos previstos para as mulheres.
A principal defesa desse grupo é de que as mulheres cisgêneras estariam perdendo espaço para pessoas trans. Isso não se sustenta na realidade. Basta comparar estatísticas como renda, oportunidades de trabalho e expectativa de vida entre mulheres cisgêneras e transexuais para ver o abismo evidente. O que estudiosas de gênero apontam é que essa é uma forma excludente e conservadora de abordar direitos humanos.
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Pode parecer que esse é um debate teórico ou circunscrito a movimentos sociais, mas não é. Quem segue os fatos políticos dos últimos anos vê que essa é uma cruzada travada sobretudo neste campo.
Retirada de direitos
No Brasil, um projeto antitrans é proposto por dia, em média, de acordo com um levantamento do jornal Folha de S. Paulo. Em 2023, já são 69 projetos de lei nas esferas federal, estadual e municipal para limitar ou retirar direitos de pessoas trans.
O movimento é uma resposta ao avanço da pressão por direitos de pessoas LGBTQIAP+, e à chegada das primeiras parlamentares trans no Congresso e nas assembleias legislativas estaduais nos últimos anos. O governo de Jair Bolsonaro e os quatro anos de políticas anti-gênero lideradas por Damares Alves também criaram terreno fértil para esse tipo de atuação.
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Como mostra o discurso de resistência da deputada norte-americana, feito enquanto ativistas entoavam “vidas trans importam” e eram presos na Câmara de Kentucky, o fenômeno não é isolado. Leis anti-LGBT e combate à LGBTfobia crescem no mesmo nível na Europa. As pessoas trans são, hoje, um dos alvos preferenciais da extrema-direita, que tem na pauta anti-gênero um dos pilares para espalhar pânico moral na população. Reflexo disso é como a transfobia tem crescido entre mães militantes, com as radfems propagando a informação falsa de que existe uma pressão social para forçar crianças e adolescentes a trocar de gênero.
“Eu não sei o que as pessoas que são como eu fizeram para serem tão desumanizadas, culpabilizadas e perseguidas. Eu não entendo como que se elenca quais humanidades são dignas de direitos e quais não são”, escreveu a comunicadora feminista Lana de Holanda em sua newsletter. “Dói saber que a minha vida, nossas vidas, são as piñatas da sociedade. Eu não quero servir de engajamento pro ódio”, continuou.
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O ódio como política
Quando o ódio guia decisões políticas, ninguém está a salvo. No Kansas, centro-oeste dos Estados Unidos, crianças poderão ter seus genitais inspecionados em escolas para poderem praticar esportes por conta de uma nova lei transfóbica. Isso mesmo que você leu: a lei permite que crianças sejam submetidas a inspeções genitais (pense na brecha que isso abre para a atuação de pedófilos). No início de abril, o legislativo desse mesmo estado aprovou uma lei que exige que crianças participem de atividades escolares com base no gênero atribuído ao nascer, desde o ensino fundamental até a faculdade.
Isso prova que a perseguição a pessoas trans atinge TODAS AS PESSOAS. O 11º Anuário da Associação Internacional Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo (ILGA), que mapeia a situação dos direitos humanos dessa população na Europa e na Ásia Central, mostra que a falsa narrativa que coloca o direito de pessoas trans contra o direito das mulheres interfere em progressos para ambos os lados em países como Sérvia, Espanha e no Reino Unido.
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Aqui no Brasil, viralizou nas redes sociais um vídeo de uma mulher negra cisgênera relatando uma situação constrangedora e violenta por ter sido confundida com uma mulher trans. “Enquanto as mulheres trans não estiverem a salvo, nós não estamos a salvo”, disse a atriz Vaneza Oliveira no vídeo. O episódio mostra também como branquitude e cisgeneridade andam de mãos dadas.
Diante desse cenário escabroso, me vem à cabeça a frase da escritora e ativista negra e feminista Audre Lorde: “eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, ainda que as correntes dela forem diferentes das minhas”.
Como o racismo não é um problema das pessoas negras, a transfobia não nasceu com as pessoas trans. É um problema a ser combatido por todas nós, porque é uma questão de direitos humanos e, se você for humana, deveria estar preocupada. Amanhã, a humanidade e os direitos a serem questionados podem ser os seus.