Foto: Skitterphoto
Matias veio buscá-lo depois do almoço, entrando em casa com as botas enlameadas até os joelhos. Parecia aborrecido. Pegou Arthur pelo colarinho no momento em que o menino sondava uma história nova para contar a Maria Vicentina, preguiçosamente debruçado no tanque enquanto ela lavava as panelas. Estreitando os olhos, o fazendeiro anunciou: tá na hora de trabalhar. O guri aceitou calado enquanto era levado mato adentro, caminhando cheio de pose, caipira. Só quando viu que estavam perto do matadouro é que diminuiu o passo e sentiu o receio chegar na garganta feito um princípio de vômito.
Isso aí, confirmou o pai. Precisa aprender como se faz.
Uma vez, Arthur havia visto um cadáver. Fazia tempo, ele era ainda muito pequeno. O presunto era um homem com as costas chumbadas de bala no meio da rua. Um sujeito que parecia ter caído no momento em que se preparava para correr, por isso tinha morrido com as pernas em marcha. Os vizinhos se aglomeraram, orbitando a tragédia até a polícia chegar, mas o filhodaquelamulherzinha ninguém pensou em tirar dali. De olhos arregalados, o menino ainda se lembrava do cheiro forte que o sangue tinha, evaporando no ar com um gosto de ferro.
No matadouro, Arthur precisou levar a mão ao nariz para não sentir de novo aquele perfume triste. Encarou um cenário apocalíptico de pouca higiene: cabeças separadas de corpos esvaziados de tripas. Dois homens de Matias trabalhavam nas carcaças, atolados até os cotovelos da substância pegajosa. Com auxílio de polias e ganchos, os corpos eram erguidos em estruturas que lembravam traves de futebol.
“Tragam o próximo, quero mostrar pro menino”, mandou Matias.
O boi chegou arrastado pelo pescoço, olhos forçados para baixo. Arthur observou, aterrorizado, enquanto um dos funcionários da fazenda posicionava o animal no centro da plataforma. Por um momento, achou que o bicho tinha desistido de resistir e estava chocado ao reconhecer um dos seus aos pedaços, qualquer um não estaria? Levou alguns minutos até que o novilho resolvesse revidar, ensaiando um revoltar de patas, dando a deixa para Matias apanhar o martelo. O martelo que era quase todo do tamanho de seus braços curtos, com o cabo de madeira e a cabeça de pedra. No rosto, uma fome.
“É assim que começa”, explicou o pai, antes de erguer o instrumento noventa graus no ar para deixá-lo cair, com força e estrépito, na cabeça do animal.
Craque.
Como uma casca de amendoim amassada no tampo de um bar. Ou um dente trincado de encontro a um osso de galinha inesperado. O som do choque entre pedra e crânio escorreu nos ouvidos de Arthur feito rachadura. Quando o boi – pesado, forte e curvilíneo – veio abaixo, tombou às prestações: primeiro as pernas tortas, depois o corpo engordado com presteza, até cair com a cabeça enterrada no concreto, último ato de rendição. Um hematoma em formato de cruz laureava as pálpebras arroxeadas.
“Ele tá morto?”, balbuciou Arthur.
“Ainda não. Você vai ver.”
Os homens desceram a máquina de içar cadáveres. Ao comando de Matias, amarraram as patas traseiras do bicho e puxaram. Os milagres da física ajudaram a erguer as arrobas de mercadoria valiosa do jeito que era mais cômodo, cabeça para baixo e barriga exposta.
Certo de que aquele gesto produziria a intimidade que precisava ter com o filho e faria dele um homem, como seu próprio pai havia feito muitos anos antes, Matias apanhou a faca de lâmina afiada, fez o menino testar a suavidade do cabo em plástico. Juntos, agora. Conduziu a mão do garoto com firmeza para realizar o privilégio do primeiro furo, um corte meridional para abrir a pança do bicho. É claro que precisaria de força para fazer o trabalho direito, mas que o moleque aprendesse pelo menos como era enfiar a chave na fechadura. Que tomasse gosto por desafiar uma cortina de vísceras.
Arthur, contudo, só sentiu a novidade do terror. Deixou a mão penetrar a carne fresca e macia do animal adormecido e o primeiro esguicho quente de sangue salpicou seu nariz. Quando foi permitido, afastou-se devagarinho, em choque, tinha as mãos sujas e o corpo dormente.
Aquela, talvez, seria a pedra fundamental de seu primeiro trauma. Permaneceria assombrado pela imagem do boi flutuando no ar com a barriga aberta, pela montanha de tripas descartáveis que as moscas sobrevoavam esperançosas; os cobertores de couro arrancados com talento e pendurados para curtir ao sol em cima de uma cerca de arame. Não foi capaz de processar a cor arroxeada do concreto esponjoso que absorvia o torvelinho de sangue, o chão que não desencardia nem com os jatos de água que os funcionários lançavam com cansaço. Por último, talvez doesse ainda mais a imagem das cabeças sem chifres descartadas em separado, vacas e bois com furos entre as orelhas. Buracos negros de uns bichos outrora imponentes, agora destronados.
“Tudo certo?”, Matias perguntou.
Sem saber o que falar, o menino gemeu. Mais calmo, aproveitando que o pai se ocuparia do desossar do boi, não teve o menor pudor em fugir. Saiu do matadouro quase correndo.
Parou em Maria Vicentina, que varria o chão do quintal de forma mecânica e mal ergueu os olhos para notar o estado catatônico.
“Não é culpa sua”, opinou, como se adivinhasse. Ela também tinha ido ao matadouro à convite de Matias, e embora tivesse sustentado os olhos porque conhecia a crueldade de forma mais íntima, a sensação de terror não era menor. Entendia perfeitamente o que se passava na alma do menino. Sentiu-se adulta e importante por poder dizer que entendia.
“É horrível”, opinou Arthur, olhando para o chão sem piscar.
Ainda que não colocasse assim, Maria sabia que era, mas estava acostumada. Recordava a praticidade da mãe, torcendo pescoços de galinha ao alvorecer: alguma coisa tem que morrer, costumava dizer aos filhos, alguma coisa está sempre morrendo.
O mundo era um cemitério.
“Quer chupar jabuticaba?”, Vicentina desconversou.
Parecia, ao seu ver, a única forma de consolo. Arthur estava assustadoramente abatido. Ela já havia feito um convite ao pequeno reino de árvores anãs, outro dia, e ele só achara engraçado. Desta vez, topou trotar até o pomar encolhido. Arrastaram-se de quatro até a árvore carregada de caroços pretos. Caindo no tapete de cascas partidas, o menino fechou os olhos e respirou a fragrância, doce e selvagem, de seiva.
Maria Vicentina – que tantas vezes tinha usado esta mesma forma terapêutica de fugir – tranquilamente estourou uma jabuticaba na borda dos dentes e sentou-se abraçando as pernas como gostava de fazer, casca de noz humana. O pomar era um mundo intocável porque lá dentro não fazia barulho algum que não fosse asa frenética de beija-flor, fruta despencando, vento tentando achar o caminho; o pomar era uma bolha de vida e ela sabia, com toda sua sabedoria secreta e estocada, que só o silêncio curava. Tá me ouvindo? A gente não vai morrer aqui também. Mas ele não ouvia, porque já estava dormindo.