Ele estava inchado feito um balão de festa e ela não se eximiu de dizer isso. Os dois se encararam entre as panelas como dois estranhos íntimos que se reencontram depois de outras vidas. Depois de uma festa que todos pensavam ter acabado cedo, mas já era tarde demais. Era estranho se enxergar agora, tantos anos depois, ver o corpo alheio diluído em sardas, rugas e pele de borracha. Pior para ele: depois de tantas meninas, não tinha conseguido parar o tempo.
O que é que você está fazendo aqui, Matias foi disparando, é claro. Um reconhecimento imediato, transparente, ela não havia envelhecido um só dia. Tinha ido embora com as malas prontas, sem dar trabalho, há tantos anos. Agora inventava de aparecer, só podia ser agouro. Cruzando os braços de antipatia, Marcela não recuou. Respondeu aos sussurros, Arthur e Maria precisaram esticar os ouvidos para captar: é horrível te ver também.
“É que ouvi falar que você ainda gosta de novinhas”, ela recomeçou, com um sorriso irônico. “Não vai parar não?”
Sem atender à provocação, ele nem respondeu, porque sentia crescendo no ar uma nuvem pesada, sinistra, alguma coisa que cheirava a rebeldia. Tentou mostrar tranquilidade, raspando a mão uma na outra, arregaçou a manga da camisa. Internamente, calculando os danos com os olhos injetados, começava a amaldiçoar seu deslize: ter permitido trazer o menino. É claro que não podia acabar bem, a tranquilidade familiar sempre esmorece diante dos intrusos. Agora, que problema tinha arranjado. Que probleminha difícil de contornar.
“Olha, eu acho melhor vocês irem embora”, tentou dizer, as palavras se enroscaram no canto da boca, soaram infantis. Ele, um homem acostumado aos atalhos da autoridade, estava inseguro. Tinha sido moldado, desde menino pequeno, a conseguir o que queria, às vezes aos berros, em outras com os braços. Nada o desafiava, o comovia. Exceto aquela ameaça invisível, quase suspeita.
Lá fora, no rastro da fofoca, os peões se amontoavam. Cada um com a sua fatia do inédito recortada contra a janela, diziam que tinha chegado ali uma dona antiga, estava para enlouquecer o patrão. Geraldina agitava os cotovelos, mandavam que sumissem, ninguém a obedecia. Matias não estava pronto para ter tanta plateia.
Para sua surpresa, Maria Vicentina parecia aceitar a ideia de uma intervenção, inchava de uma esperança boba. Esclarecia bem o próprio partido, deslizando suavemente para as costas de Marcela, escudo contra uma ameaça que já começava a se desfazer no ar. Uma solidez de fumaça. Foi lindo quando a menina descobriu que Matias poderia virar poeira.
“A nossa coleguinha aqui não quer mais ficar com você”, Marcela traduziu, como se precisasse.
Por não saber o que fazer, o fazendeiro riu. Um riso histérico e pungido. Mais terror do que graça. Antecipando-se àquela tentativa absurda de independência, tentou agarrar o braço de Vicentina, que escorregou do aperto. Você não vai fazer isso, cuspiu sem entender, volta aqui.
“Você não é o dono dela”, retrucou a ex-mulher.
“Sai daqui.”
“Saio não. Só se levar os dois comigo.”
(Marcela enfrentou a raiva porque crescia dentro dela uma força quase sobrenatural de tão desconhecida. O rosto em pânico da menina que tinha a idade de seu filho – do filho deles – injetara nela uma capacidade de lutar por um exército inteiro. Um pelotão de solidariedade e amor, porque podia até não ter nascido para isso, mas era mãe.)
“Vai. Pergunta para ela se ela quer ficar”, emendou, protegendo o menino e a menina.
O fazendeiro não perguntou. Quis resposta com um olhar sombrio, nervoso. Maria Vicentina, entretanto, não conseguia nem se mover: tremia todinha, não tinha como explicar que o odiava, odiava. Se pudesse dizer dizia isso. Antigamente, na casa velha, o pai teria resmungado, como sempre fazia quando ela se calava assim – o gato comeu a língua. Mas desta vez não ia emburrada. Cheia de coisas para dizer, Vicentina desaparecia dentro do próprio silêncio. Desta vez estava muda, garganta oca, punia-se: covardia, perder o fôlego assim tão perto da liberdade. Era quase como desmerecer ser gente.
Entendendo aquilo que ela queria gritar, mas não conseguia, Arthur abraçou-lhe a mão. Vamos embora, sussurrava para a mãe, ele mesmo branco de susto, não tinha visto nos olhos de gato do pai tamanho ódio. Parecia um demônio. O menino tinha visto alguns demônios, mas aquele era diferente. O diabo congênito.
“Maria Vicentina”, voltou a grunhir o Matias, espumando de descontrole, apertando o passo. “Você não vai fazer isso comigo.”
Ele não queria perder, não tinha nascido para o fracasso.
Abriu o braço para chacoalhar aquelas duas abusadas de pancada, tomar o que era seu por direito. Quase ia conseguindo, não fosse a mão engasgar no meio do caminho. Resfolegante, suando e inchado, cambaleou para trás. Sentia o sangue do coração sobrecarregado correndo dentro dos ouvidos, eram sirenes que alertavam para um perigo antigo: a pressão, nessas horas, derrubava o temperamento.
Marcela aproveitou a brecha para concluir o assunto, arrastar as duas crianças para fora da casa, enfiar dentro do carro, correr. Tinha o caminho todo radiografado na cabeça. Maria Vicentina, contudo, escapou da mão suada, para surpresa da mulher, que não teve nem como segurar. Um Arthur indignado viu a amiga se desgarrar, cabelo de fogo trançado, sumindo no mato. Uma pedra de gelo se afastando no oceano. De repente não queria ir.
***
Com as pernas velozes, a cabeça voando de descompasso, a menina tomou outro rumo, atravessou o quintal. Foi furando o pé nas pedras pontiagudas, que estava só de chinelo. A gente toda que assistia ao espetáculo surpreendeu-se com aquela debandada, decerto corria para se esconder, era mesmo esse bichinho assustado. Houve quem risse e lamentasse. Caminhando devagar até a porta, tentando recobrar as forças, um Matias avermelhado e fraco teve esperança de que fosse amor.
Mas o que Maria Vicentina procurava lá fora tinha outro nome, nome de gente: Pedro. Abraçou o vira-lata, porque sem ele não podia ir embora. O cachorro veio manso, resgatado em pleno cochilo, as orelhas murchas de carrapato, desconhecendo maldade. Com os olhos humildes, quase chorosos de desejo, a menina chegou de volta, ninguém parou. Pediu permissão para entrar no carro como quem esperasse por isso a vida inteira. Marcela abriu a porta com uma força estrondosa, aliviada, só venha.
A decepção de Matias estremeceu o chão. Não soube a quem mandar impedir aquela atrocidade, aquele saque sentimental. Quis fazer alguma coisa. Qualquer coisa. Mas a voz falhava, a língua embaralhava nos dentes. Geraldina era quem lhe amparava o corpo. Em rara lucidez, ia dizendo: deixa ir. Deixa ir essa negrinha.
“Não venha atrás de nós que Brasília não é seu chiqueiro”, gritou Marcela, satisfeita, assumindo o volante do corsa. “Eu espero, de coração, que você acabe sozinho”, concluiu, vidro baixo, o motor na ponta do pé.
Ainda tremendo, com a cara colada na janela e o focinho de Pedro no queixo, Maria Vicentina se despediu com a mão aberta, os dedos finos suados, emaranhada no banco de trás de um carro pequeno. Ela desejava o mesmo.
Não apenas que ele ficasse sozinho: que morresse.