Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Pequenas Esposas”, de Fabiane Guimarães. Leia os capítulos anteriores aqui.
Oprimeiro sinal veio em noite de lua cheia, época em que os cachorros uivam mais fino e as ondas sobem de volume no mar, na praia de algum litoral distante e mítico. Aos doze anos (segundo uma estimativa de dor), Maria Vicentina acordou com as tripas em nó, mas não quis acordar o marido por medo de represálias. Cambaleou até o banheiro, gotinhas de suor grudadas nos lábios grossos, e teve certeza de que uma diarreia sem fim se aproximava, galopando no baixo-ventre a vingança de seus excessos.
Mas não se tratava de um desarranjo qualquer. Gemendo baixinho de cócoras no banheiro gelado, deixou verter o sangue empretecido, que mais tarde atribuiria a um doença rara e impiedosa. Escondeu suas vergonhas forradas em papel higiênico e foi dormir em prantos, rogando a deus nossa senhora que não a deixasse morrer sem rever a família.
(A família por quem ainda tinha arroubos de saudade, mesmo contra sua vontade contrariada. Pensava, entretanto, cada vez menos no pai. Ultimamente direcionava seu amor por aqueles que, talvez, não tivessem culpa – não a mãe de cabelos quebradiços e lamentos fracos. A mãe, se quisesse, voltava. Maria estava certa de que os únicos inocentes na debandada eram mesmo os irmãos, que ainda poderiam perguntar pela única menina do grupo, na longa caminhada até o nordeste selvagem e embrionário, porque certamente ninguém os consultara. Seus dez homenzinhos, com quem brincava de pique e escalava árvores, dez moleques a quem devotaria todos os sentimentos bons só para não se ver morrendo de ódio.)
No começo, a menina achou que, assim como acontecia com os machucados normais, o sangue haveria de cessar se pressionasse com força. De forma que passou a caprichar naquele curativo improvisado por cima da calcinha, atolando-se em tufos de papel, descartados depois na lixeira com as manchas voltadas para baixo. Refletiu sobre as possíveis razões e só encontrou uma: estava claro que, de tanto remexer, o marido tinha arrebentado qualquer coisa dentro dela. Chorou de raiva enquanto lavava os cômodos, tomando cuidado para que Geraldina não ouvisse.
Já fazia tempo que Maria vivia para se defender. A mulher de Tião ocupava os espaços zombando dela em silêncio – eram inimigas declaradas agora, cada qual em sua trincheira, mas com certa diplomacia. A menina havia aprendido a lidar com a giganta há um ano, mais ou menos, após ter a sorte de flagrar um segredo.
A surpresa: na meia luz da sala de jantar, enquanto Geraldina e Matias colhiam os restos de mais uma de suas recepções regadas a álcool e música – todos os outros convidados fora de combate – acabou pipocando uma declaração de amor. Maria havia observado quietinha, escondida atrás de uma parede, enquanto a mulher em dobro deslizava até o colo do patrão, o ruivo assustado, lambendo-lhe as costeletas e buscando o espaço entre as pernas. Buscando uma brecha. A garota, entre divertida e assustada, vira Matias enfurecer-se com a ofensiva, atirando a governanta da cadeira, toda a força do constrangimento direto ao chão.
Ele era um homem fiel aos miúdos. Apenas fizera questão de sair, aturdido, caçar no escuro alguma coisa para fazer até que sua empregada retomasse o juízo. Maria, porém, aproveitara para deixar a parede. Com sua cabelereira crespa (cultivada selvagem e negra) e seus pés suaves, foi oferecer a mão. A mão de ajuda que Geraldina encarou como ofensa, obviamente, rosto vermelho explodindo de vergonha. Nunca mais tocaram no assunto, mas a esposa de Tião logo tratou de dar o devido descanso àquela pequena endemoniada que ressuscitava o desejo morto do homem rico.
“Pode preparar, que ele não vai mais gostar de você. Quando tiver cabelo nessa buceta”, resmungou, certa vez, de passagem por Maria Vicentina.
Pensava que ofendia.
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É claro que, pela natureza do milagre, foi Geraldina a primeira a perceber o sinal de que as coisas não iam bem, que a menininha agonizava e um filete vermelho descia pelas canelas secas. Revirou-a no corredor, sorriso secreto de quem sabe das coisas e guarda o conhecimento do futuro.
“Tá sangrando!”, sussurrou. “A pretinha sangrou.”
Os passos seguintes, é claro, aconteceram rápidos, sem morte ou hospital. Um Matias aturdido forneceu os absorventes, que Maria Vicentina não soube usar e por isso vazava feito os bebês pequenos. Passou a ver regularidade naquela rotina de calvário. As dores abdominais sempre anunciavam o que estava por vir, de forma que ia ao banheiro esperar, pacientemente, para se lavar quando chegasse a hora.
O interessante, contudo, não foi a expressão vitoriosa de Geraldina, como se achasse que agora competiriam com justiça; nem sequer o nojo de Matias naqueles dias vermelhos, esgueirando-se de Maria com uma expressão de asco. É que, daquele tempo em diante, ela sentiu alguma outra coisa alterar a composição de seus ossos, fermentando os órgãos, fazendo as pernas esticarem e o quadril abrir-se em leque. Ganhou peso, ocupando os vestidos até as costuras, e de extremidades preenchidas passou a despertar fome nos funcionários da fazenda – todos demitidos em seguida pelo patrão encolerizado. Até o seu cheiro parecia diferente: cheiro coalhado e morno.
Maria Vicentina não tomou consciência da dimensão e da propriedade daquele momento. Depois poderia tentar definir, com sua visão nebulosa de criança, o que sentiu: o pânico de todas as coisas que chegam antes da hora e a gente nem percebe, porque só foi assim, de susto, que começou a se fazer mulher.
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