Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Pequenas Esposas”, de Fabiane Guimarães. Leia os capítulos anteriores aqui.
Nas primeiras manhãs, Maria Vicentina não conseguia deixar a cama, ardendo em febre misteriosa. Matias não se preocupou, em breve ela se aprumava, passado o luto inicial, logo deixava de reclamar. Inofensivo e arfante, ele dormia ao seu lado e sumia antes do raiar do sol. O cheiro de café coado despertava a menina, que se recusava a abrir os olhos e sentia os ossos doerem, desacostumados ao colchão macio: o corpo parecia se expandir, pedir espaço para aceitar aquele novo grau de existência, talvez crescesse todas as noites – só para amanhecer e continuar pequeno.
Quando finalmente colocava os pés miúdos no chão, caminhava para espantar o abandono. A fazenda abrigava sempre um mutirão de funcionários atropelando-se para fazer dinheiro. No segundo ou terceiro dia, um caminhão comprido de gado chegou lotado de novilhos, que foram descarregados no pasto em uma interessante estrutura de madeira, corredor estreito e elevado, com porta em formato de guilhotina. Os bois desciam de cabeça baixa, em fila perfeita, aceitando passivamente o destino com os olhos de carvão abertos para o nada. Tranquilos e exaustos, abraçando o vazio. Debruçada sobre a cerca, assistindo a tudo dentro de suas botinas encardidas, Vicentina achava que entendia.
Acenou fraquinho e teve pena, porque sabia que cedo ou tarde acabariam todos no matadouro dos fundos. De lá sairiam aos pedaços, nos sacos estufados que os homens carregavam para cima e para baixo, até serem instalados em algum carro com traseira refrigerada e levados para longe.
É verdade que os funcionários não prestavam atenção nela. Estavam todos ocupados em alimentar ou matar os animais, havia muita liberdade para se perder. Mas a menina, que mal sabia voltar para o conforto da casa grande, uma vez vagando pelo quintal, não concebia um lugar para ir. Sonhava com a chácara de baixo, seu lar para sempre, mas não se atrevia a voltar. Não tinha qualquer noção da distância. Nem coragem. De noite sonhava com corredores de madeira e ganchos de metal, só não acordava aos gritos porque tinha medo de abrir os olhos e descobrir que ainda era boi.
Para piorar, não encontrava o pai. Ele tinha que estar ali, porque era o que fazia, não era? Cuidava da propriedade, vigiava os canteiros varridos pelo vento. De forma enigmática, nenhum dos rostos que circulavam pela fazenda, tratando de algum assunto de natureza urgente, era o dele. Encucada, Maria Vicentina voltava para a casa de Matias, remexia nas panelas para cavar o almoço, buscando reproduzir no fundo de alumínio as receitas que a mãe e a tia ensinavam, quando cuspiam ordens na cozinha antiga.
Cozinhar, porém, era mais difícil do que parecia antes, com o auxílio das duas mulheres no cômodo pequeno. A garota descobrira que não conseguia medir o tempo das coisas sem um nariz farejando seu progresso e, se não queimava o arroz, torrava as grossas camadas de carne nobre reservadas para o prazer do marido. Nervoso, Matias arrebentava os pratos, jogava a comida no lixo e gritava que ela só podia ser, mesmo, uma negrinha inútil. Com uma frigideira e dois ovos fazia um mexido, deixando a menina em prantos e faminta.
Foi só por fome, aliás, que Maria Vicentina tomou consciência da cozinha. Com algum esforço, passou a entender os cuidados que o fogo pedia, nascendo das bocas de latão com pressa – a comida só chegava quando vigiava com paciência os pequenos caldeirões, apagando as chamas ao menor sinal de excesso. Em pouco tempo já não desperdiçava o feijão, nem cortava os dedos ao descascar as batatas: se errava, errava no sal, coisa boba e fácil de conserto.
No almoço do quarto dia, ganhou um elogio do marido. Desprezou as palavras de afeto. Lavou a louça e correu para o quintal, para caçar no mato o rosto inexpressivo do pai.
Pelo menos três vezes ao dia ela visitava a casinha onde ele vivia, próximo ao galinheiro. A porta destrancada permitia a ronda, quando a menina confirmava, com prazer, o cheiro dele nos lençóis e a bota ainda debaixo da cama. De vez em quando até se sentava, apalpando a manta de tricô e olhando para a cômoda, vazia de miudezas. Vazia de tudo. Demorou algum tempo até ter a ideia de abrir as gavetas e não se surpreendeu, não no fundo, ao também encontrá-las sem qualquer muda de roupa.
A descoberta coincidiu com a confissão de Matias, que inspecionava a menina de longe e estava farto daquela esperança falida e injustificada. Ela já chorava por antecipação quando ele decidiu falar: seu pai foi embora.
“Embora pra onde?”, balbuciou, desesperada.
“Para a terra dele, no Piauí. Com o dinheiro que eu dei, levou sua mãe e seus irmãos para uma vida melhor. Você tem que ficar feliz por isso. Tirou sua família da miséria.”
No fundo de uma das gavetas, Maria Vicentina encontrou um santinho esquecido, pequeno e desbotado retrato da ave-maria com uma oração gravada no verso (que não podia ler). O rosto sereno e pálido de nossa senhora, com a cabeça ligeiramente curvada para o lado, compadecia-se daquele sentimento de terra arrasada. Deixou o quarto em frangalhos, chorando tanto que nem conseguia enxergar o caminho. Quando parou de chorar, os olhos ficaram duros, cristalizados de raiva, e jurou que um dia iria encontrá-los. Se alguém tivesse prestado atenção na menina descabelada poderia atestar a seriedade daquela promessa: com expressão neutra e desconfiança de ferro, Vicentina começou a virar sombra. Uma sombra lânguida e vazia atravessando as paredes sem a menor intenção de ser gente.
Antevendo o desejo renascer e sabendo, por causa disso, que era hora, Matias a procurou com ardor naquela noite, os dedos nodosos visitando as extremidades do corpo frágil, rasgando a pele por dentro – apesar da cólica profunda que a atormentou durante e após aquele assalto, a menina não gritou. Nem sequer reclamou. Levantou-se de fininho, encurvada, e foi buscar o consolo da água na pia do banheiro, antes de voltar a se deitar. Um fio de sangue escorria pela calcinha. Com um beijo pegajoso contra os lábios crispados, Matias sussurrou: vamos ser muito felizes juntos, minha neguinha. Aceitando de bom grado os pesadelos, Maria dormiu sem responder.