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10 de março de 2016

Pequenas Esposas: Oitavo

Ele era só um pequeno acidente a ser contornado, devolvido para de quem era a culpa de verdade

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Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Pequenas Esposas”, de Fabiane Guimarães. Leia os capítulos anteriores aqui.

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No dia em que o mandou embora, a mãe não disse nada, nem sequer agiu de uma forma diferente. Afligiu-se de maneiras polidas. Há tempos que permanecia assim, um rosto triste e perturbado, vagando solitária pelos corredores, chegando mais tarde do que o costume, enquanto Arthur se perdia pelas ruas. Se ele tivesse adivinhado, pegava carona na estrada, fugia de casa. Naquela época, entretanto, achou que ficaria tudo bem.

A mochila com o pouco que o menino tinha de vestir foi empacotada na calada da noite de forma que, despertado à força, não perdesse tempo arrumando nada. O café com leite esfriava na mesa. Era sábado, ele não entendia por que tão cedo. Fitava a cozinha, iluminada do azul das sete horas, confuso e amarrotado.

“Come logo”, mandou Marcela.

“A gente vai para algum lugar?”

Doía nela assumir que estava fazendo aquilo, mas arrumava toda sorte de desculpas para se blindar da culpa: era preciso, daria um jeito de buscá-lo de volta, antes longe do que morto. Além do mais, havia a carreira auspiciosa que a recebia de braços abertos – não fazia uma semana, tinha conseguido agendar uma reunião com Beatrice, a responsável pelas meninas da política. Vestida de forma impecável para a ocasião, certa de que a rainha das putas devia ter uma lupa para identificar o desleixo, Marcela se encontrara com a velha em um apartamento funcional na Asa Sul, três vezes o seu barraco. A mulher, de origem gaudéria e vozeirão de fumante, veio recebê-la metida em um terninho com os cabelos loiros esvoaçantes, fios de algodão e ouro. Medindo-a com os olhos, anunciara: não cabia em nenhum gabinete, não servia para companhia, mas dava para cadela. Fecharam contrato.

Marcela atenderia o corpo suado de líderes quase imperiais, dispostos a pagar uma fortuna por momentos de liberdade e luxúria, com exclusividade e sem restrições. Preencheria as lacunas que as outras meninas, as estudadas, não estavam em condições de liquidar. Afrescalhavam-se na cama, elas. Marcela, por outro lado, conhecia os desejos secretos dos homens, conhecia desde cedo, e estava disposta a trabalhar pela discrição. Infelizmente, Beatrice havia sido clara: precisava se livrar do menino, por ora. Dedicação exclusiva.

O mais difícil até ali era fazer a ligação. Cada segundo de chamada uma punhalada no meio do peito. Ele atendera o telefone com um mínimo de curiosidade, mas não deixara a polidez de lado ao reconhecê-la feito bons amigos, velhos estranhos. Tinha disso, o porco, uma educação infinita como se no fundo não fosse um covarde.

“Preciso da sua ajuda”, ela havia dito.

“Eu já te dei dinheiro”, ele argumentara, sem ouvir o resto.

“Não é dinheiro. Preciso te contar uma coisa.”

Tudo foi narrado com um intervalo gigantesco de silêncio na metade. Ao final do relato, ele não duvidara, até tinha compreendido com surpreendente doçura, talvez carência de meia-idade. Melhor assim.

*****

Arthur perguntou mil vezes, de um ônibus ao outro, o que é que estava acontecendo. Começou a ter medo, e só deus sabe que o medo era uma parada que não se resolvia fácil: o estômago cheio de bolotas, garganta seca, tinha um gosto de morte. A mãe não sabia como explicar e se distraía folheando uma revista comprada por impulso no mercado. Não tinha sido feita para isso, para começo de conversa. Ele era só um pequeno acidente a ser contornado, devolvido para de quem era a culpa de verdade. Estava convencida.

O que não impediu, é claro, que o coração sangrasse ao dizer adeus e ordenar que ele se comportasse, que tratasse de se alimentar direito e, caso sobrasse tempo, que um dia pudesse perdoá-la, porque não sabia mesmo ser mãe. Deu um beijo e se afastou meio trotando, meio correndo. Arthur se recordaria para sempre dessa imagem, o corpo delgado e proporcional que se afastava em nuvens de poeira; remoeria com raiva a visão dos cabelos recém-aparados, das unhas polidas e até do jeans desbotado que ela vestia.

O menino só parou para olhar ao redor quando o ônibus já ia longe. Percebeu que estava em um arremedo de estação rodoviária: duas baias, um banco de madeira coberto por telhado de zinco, algumas vendinhas, um bar. Nada no horizonte que não fosse estrada, poeira e vento. Um calor do inferno. Manteve-se sentado, paralisado, a mochila colada ao lado do corpo. Achou que se tratasse de outro castigo. Sua mãe, desta vez, tinha caprichado na vingança. Deixá-lo no meio do nada, abandonado em uma área rural. Era criativo, mas assustador.

Sem saber o que fazer, Arthur esperou por duas horas inteiras. Viu o sol descolar do horizonte, subir até o ponto máximo do céu, incendiando aquela terra acre e seca, viu homens e mulheres de pele macilenta e maltratada arrastando crianças catarrentas. Ficou com fome, juntou umas moedas e comprou, do vendedor de laranjas, uma fruta gorda e descascada. Tentaram perguntar o que fazia ali, os desconhecidos gentis. Ele deu de ombros. Esperando minha mãe voltar.

O lance é que ela não voltou. E nem voltaria, ainda que tivesse chorado todo o caminho até Brasília pensando nessa ideia. Marcela achou que fosse morrer. Sentiu ânsias de vômito a ponto de descer em Sobradinho para visitar um banheiro sujo e lavar a cara. Com uma água mineral nas mãos, comprou um cartão telefônico, ligou para Matias. Puta que pariu, é verdade, o moleque chega hoje – ouviu-o dizer. Não era claro que se esqueceria?

Entre a ligação e o lembrete, tinham se passado outros trinta minutos na espera de Arthur, que agora já não mirava esperançoso o caminho. Os olhos de chumbo do menino – que podiam ter sido verde ou castanhos, mas estacionavam em um tom entre os dois – começavam a ficar pegajosos de ódio. Sentiu o abandono fincar na alma feito água enchendo um barco à deriva. Lentamente. Fervendo como o sal do mar cozinha as pernas dos navegantes, era assim que ele se sentia. Não precisava dela, de qualquer forma.

Preparava-se para seguir seu rumo, acometido de sentimentos muito adultos, quando a caminhonete negra aportou na estrada. Um homem pequeno de botas compridas desceu do banco do motorista, coçando a cabeça ao encarar o garoto. Matias achou conhecida a tonalidade cobre no cabelo encaracolado, pesou o aço dos olhos, o corpo mínimo. Pele encardida, orelhas de abano. Procedia: tinha nacos da mãe, mas dava para ver que sobrava alguma coisa de uma linhagem boa, branca, europeia. Dele. Arthur ficou surpreso quando o sujeito de pernas curtas caminhou em sua direção.

“Entra no carro”, mandou.

“Qual é, tio, tá achando que sou viado?”, o menino se esquivou, lembrando-se dos amigos. Estufou o peito. Não fariam dele uma boneca.

“Entra logo no carro e me respeita que eu sou é seu pai.”

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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