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mulher branca, cabelos ondulados no ombro, batom vermelho escuro, blusa branca escrito lucidas
27 de junho de 2024

Nenhuma mulher quer ser heroína. Mas, nas enchentes do RS, minhas amigas foram

São muitas as histórias de quem está fazendo o que ninguém imaginava que teria que fazer, em cada uma delas, eu gostaria de dar o abraço mais agradecido

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duas mulheres vestindo roupas de frio se aconchegam
Arte: Giulia Santos

Eu sou uma grande fã das minhas amigas. Não economizo elogio e nem canso de pensar em quão foda elas são. Apesar disso, nada me preparou para o que eu vi amigas fazendo nesse último mês de maio. Antes, quero contar que estou aqui pra pedir que você chegue mais perto. De mim, por meio dessa nova coluna em AzMina, das suas amigas de sempre e das amigas que você nem conhece ainda. 

Um tempo atrás, comecei a estudar os superpoderes da amizade feminina. Essa curiosidade virou um sonho chamado Lúcidas (@lucidas.cc), organização pioneira de investigação, conteúdo e experiências sobre o vínculo de amizade entre mulheres. Como essa é a coluna de estreia da parceria entre a Lúcidas e AzMina, vamos ter bastante tempo para discutir cada um dos superpoderes dessa relação. 

Hoje, é de outros superpoderes que eu quero falar. Daqueles que descobri em mulheres que já tinham minha admiração nos níveis mais altos. Amigas que já me salvaram de diferentes formas. Mas, quando meu Estado natal, o Rio Grande do Sul (RS), foi desolado por enchentes sem precedentes, eu enxerguei nelas poderes do tipo que nenhuma mulher quer precisar ter: o de super-heroínas. 

Estrategista e pragmática em ação 

A Mari Gutheil (@mariguti) é uma estrategista, CEO, encantadora de plateias exigentes. Quando as águas deixaram bairros inteiros submersos, eu a vi dentro de barcos de resgate, liderando times que salvaram milhares de pessoas e animais. Milhares. De São Paulo, onde vivo há 7 anos, demorei um pouco pra entender o surrealismo da cena. 

Escoltada por militares, minha amiga traçava rotas, organizava times, convocava voluntários, conseguia empréstimos de retroescavadeiras e doações de cobertores e alimentos. Liderança, senso de prioridade, coragem, conexões, engajamento, achar que o impossível é possível. Eu já conhecia esses poderes da Mari. Mas desse jeito eu nunca conseguiria imaginar. 

A Mirella Nascimento (@mirellalnascimento) é pragmática. Tem um olhar pra vida singular: se pode ser resolvido, vamos resolver. Se não pode, vamos sofrer só o necessário, não precisa aumentar a dor também. Não à toa é uma das melhores pessoas pra dividir BOs de qualquer tipo. Ela também é jornalista, editora, estrategista e criativa. E um poço de empatia. 

A Mi juntou tudo isso em uma atuação absolutamente necessária: em meio a tanta gente precisando de tanto e tanta gente doando (obrigada! continuem!), ela foi – adivinhem – pragmática! Todo dia descobria o que era necessidade imediata em alguns dos principais abrigos de Porto Alegre e saía pra comprar e entregar direto pra quem precisa. 

Mobilizando a sua rede, ela juntou doações em dinheiro que viraram comida, cobertor, kit de limpeza, remédio pra quem não pode esperar um cadastro, uma liberação de verba, uma vaga. Atuando na urgência, ela não deixou de pensar no que vai ser necessário na próxima fase, e se envolveu em iniciativas para criar estratégias de limpeza e reconstrução. 

Brigona e teimosa

Desde os meus 16 anos eu sei que a Marianna Senderowicz (@marysendero) é brigona. Jornalista, empreendedora, ativista, mãe, não foge de um debate e não se dobra para o que fere seus princípios. Então, não fiquei totalmente surpresa quando vi minha amiga liderando uma campanha para exigir que um grande clube do seu bairro cedesse espaço para abrigar cães resgatados. 

Quando entendeu que a porta estava mesmo fechada, Mary não se conformou. Ao lado de um grupo com tanta indignação quanto amor por doguinhos como ela, lá estava limpando e restaurando um imóvel, conseguindo doações, mobilizando restaurantes pra mandarem lanches para os voluntários, divulgando tudo para conseguir mais conforto para os bichos que sofreram o inimaginável. 

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Dos tantos choros que chorei desde que as chuvas começaram, um dos mais largados foi com o registro do reencontro de uma tutora com seu cachorro, acolhido no abrigo que a Mary ajudou a levantar. Não foram poucos os reencontros e as adoções, que ainda devem rolar por muito tempo. 

A Patrícia Angeletti (@pangeletti) pegou o carro no meio da madrugada para salvar uma família isolada em um bairro que foi soterrado na Serra. A estrada que pegou sumiu horas depois. Brigou com bombeiro, juntou doações, foi voluntária. Mas disse que a sensação de fazer pouco e os gritos que ouviu naquela noite vão perseguir seu coração pra sempre. A Pati é uma das mulheres mais inteligentes e melhores profissionais que já conheci. Também sei que quando ela coloca uma ideia na cabeça, vai até o fim. Mas não sabia que ela arriscaria a sua vida para salvar outras.

A energia que vem da necessidade

São muitas as histórias de quem está fazendo o que ninguém imaginava que teria de fazer. Só na minha rede tem gente trabalhando nas mais diferentes frentes. Em cada uma delas, eu gostaria de dar o abraço mais agradecido. 

A verdade é que minhas amigas não são super-heroínas, não têm superpoderes e também não são exceções. Enquanto fazem tanto, têm seus trabalhos, suas famílias, casas, vidas que também foram afetadas de várias formas por essa tragédia. Ainda vou levar um tempo pra entender como elas conseguiram reagir assim. 

Dizem que o senso de necessidade cria uma energia que a gente nem sabia que tinha, acha tempo, descobre força. Mas tem uma coisa que me comove e surpreende ainda mais. Acho que só os mais próximos dessas pessoas que estiveram na linha de frente puderam testemunhar esse detalhe, e por isso termino cometendo a indiscrição de contar pra vocês: enquanto literalmente salvavam vidas, enfrentavam ameaças e testemunhavam dores, essas amigas também sorriam. 

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Elas perguntavam como eu estava. Mandavam e recebiam amor e cuidado. E figurinhas de Whatsapp. Sonhavam que quando a água baixasse iam celebrar, descansar, recomeçar. E eu sonhei junto. 

Elas me salvaram também

De longe, seca e segura, eu vivi uma dor que também vou levar um tempo pra processar. Uma mistura de culpa por não estar lá, solidão, deslocamento, incompreensão de quem está do lado e não conhece aquelas ruas, aqueles lugares afetivos destruídos, aqueles parques alagados. E impotência. 

Testemunhar espantada as minhas amigas e voltar minha energia pra elas foi um jeito de me manter conectada e de pé. Se elas estavam, eu tinha que estar. Sem saber, elas me salvaram também.

Para contribuir com o corre da Marianna e o abrigo de animais resgatados @oabrigodobomfim: PIX 956.628.710-00  (dependem de doações para segurança privada noturna, lavanderia, compra de materiais de higiene, lanches dos voluntários e sachês). Para contribuir com o corre da Mirella, com doações direcionadas para alimentos, roupas e material de limpeza: PIX mirella.nascimento@gmail.com

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* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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