Patrícia Zapelini, de 50 anos, saiu para trabalhar em uma quarta-feira chuvosa e não conseguiu voltar para casa. Depois de trabalhar a noite toda na portaria de um condomínio residencial, se deparou com a informação de que seu prédio estava cercado de água, no bairro Humaitá, em Porto Alegre (RS). Cansada, com fome e sem poder chegar em casa, Patrícia pediu ajuda para uma amiga, que a hospedou por três dias. Passou a fazer parte do grupo de mulheres desabrigadas no estado.
Em abril passado, o Rio Grande do Sul (RS) viveu sua pior tragédia com as chuvas, que começaram por Santa Cruz do Sul, e se espalhau para as demais regiões do Estado. Enchentes e alagamentos atingiram 476 municípios. Maio de 2024 foi de recordes na capital gaúcha. Foi o mês mais chuvoso de toda a série histórica da cidade e a elevação do nível do lago Guaíba chegou a mais de 5 metros.
Percebendo a demora dessa água em baixar, Patrícia decidiu procurar um local temporário. Ela foi a primeira moradora do abrigo da Escola Estadual Professor Sarmento Leite, na zona Norte de Porto Alegre. Chegou lá antes de ele abrir oficialmente, e conta que foi bem acolhida, pôde escolher um canto no Quarto 1, recebeu cobertor, roupas, comida, café e chá à vontade. Mas cada dia longe de casa, da rotina e da privacidade, foi abalando o emocional de Patrícia. “Eu tô doente, tô abatida. Só quero sair daqui para ir pra minha casa. Não quero ficar carregando minhas coisas de um lugar para outro”, desabafou.
Atualmente, 35 mil pessoas estão em abrigos provisórios e 575 mil desalojadas (em casas de parentes ou outros lugares). Já estão confirmadas 172 mortes e 44 pessoas desaparecidas. Os dados oficiais ainda não dão conta de fazer um recorte de gênero, classe e raça para a tragédia climática no RS. Não há informações precisas sobre quantidade de mulheres e seus perfis. A reportagem d’AzMina passou alguns dias em um dos abrigos e percorreu bairros de Porto Alegre para entender o impacto de tudo isso na vida de mulheres, mães, avós e meninas.
Na escola em que Patrícia estava abrigada havia 75 pessoas. Ali, ela presenciou conflitos pelas coisas mais banais, como um prendedor de roupa ou um cobertor. As brigas foram acontecendo de diferentes formas. A verdade é que, para além de questões de convivência, Patrícia estava cansada de pensar no coletivo, de enfrentar fila para ir ao banheiro ou comer. Ela queria a sua casa, com a liberdade de fazer o que quiser e estar na companhia de quem desejasse.
Sem entender ainda o impacto que essa situação de calamidade vai ter na sua saúde mental, Patrícia contou que vem enfrentando esquecimentos: “Não lembro como é a minha casa. Eu tô esquecendo tudo. Tô falando e não sei mais as palavras e o que ia falar”.
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Dores, conflitos e exaustão
Sandra Noeli Ferreira, de 57 anos, também está exausta. Ela é líder comunitária da Ilha do Pavão, uma das 16 ilhas que fazem parte do bairro Arquipélago, na capital gaúcha. É a terceira vez, em menos de 1 ano, que a região é atingida pelas chuvas e cheias do Guaíba, e é preciso mobilizar ajuda aos moradores.
Fora de casa há um mês, Sandra não tinha dimensão do prejuízo que teve, só sabia que ele seria grande. Estava dormindo com seus dois cachorros em uma loja vazia. Improvisou um quarto com um colchão que ganhou e seguia sobrevivendo de doações. “É um recomeço do zero e a gente já não tem mais 18 anos. Porque quando tu é jovem, tu tem tempo e vê a vida de outro ângulo. Eu já tô calejada dos erros dos tais governantes que deveriam cuidar de nós.”
São anos de trabalho, de luta, tentando reerguer a Ilha, não deixando as pessoas tirarem os moradores de lá. “Daí quando tá finalmente organizado e funcionando, vem a enchente e acaba com tudo”, lamenta Sandra. Há 7 anos, ela é presidente da Associação Vitória Ilha do Pavão, que oferece apoio social às 150 famílias que vivem no local.
Crédito: Emilene Lopes
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Comunidade de mulheres de luta
A comunidade da Ilha do Pavão é formada em sua maioria por mulheres que criam os filhos sozinhas a partir da reciclagem. Com muito esforço, conseguiram erguer a sede, desenvolver projetos sociais e criar um refeitório que servia almoço de segunda a sexta-feira. Hoje, o espaço está cheio de lama, com os vidros quebrados e os mantimentos estragados. A água destruiu tudo.
Crédito: Arquivo pessoal
Sandra também é pedagoga e diretora de uma escola de educação infantil do bairro e conta que doeu muito ver o espaço criado com tanto zelo embaixo d’água. O olhar cansado agora não é só por ter perdido os óculos na enchente, é também por não conseguir vislumbrar um futuro próspero na Ilha. “Sabe quando tu vai perdendo a esperança? Tudo começa a ficar muito sombrio.”
Foi a primeira vez que ela teve que sair de casa. Todos os moradores tiveram de deixar seus lares. Alguns foram para abrigos, outros para casas de parentes e teve ainda quem montou acampamento na BR-116, que fica na margem da Ilha do Pavão.
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Sobrecarregadas, como sempre
Ao olhar para o lado e ver quem está na linha de frente trabalhando para amparar e minimizar as perdas do povo, Sandra vê mulheres. “Os homens são meio perdidos, meio parados. É a gente que tem que limpar, empurrar e ir atrás. Então, como sempre, as mulheres estão sobrecarregadas”, afirma.
Cristina de Almeida, 38 anos, trabalha com Sandra na associação. Ela e a família saíram da Ilha no início de maio e, desde então, estão abrigados na casa de uma amiga na zona Norte de Porto Alegre. Depois, além dela, o marido e três filhos, cerca de 20 famílias dividiram o mesmo espaço por semanas. Ela lembra que em outras enchentes, eles passavam o dia acampados na estrada e voltavam de caiaque para dormir no segundo piso da casa. Desta vez não deu nem para fazer isso.
Passados 30 anos vividos na Ilha do Pavão, pela primeira vez, Cristina pensa em se mudar de lá. “O governo prometeu casa para quem foi atingido. Eu me inscrevi, e se eles me derem eu saio de lá”, afirma.
Espaços exclusivos para mulheres (após assédios)
Com as consequências das fortes chuvas e cheias no RS, foi necessário criar abrigos temporários em várias cidades. A estimativa do governo estadual é de que, no último dia 10 de maio, pelo menos 80 mil pessoas passaram por abrigos em todo o Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, esse número chegou a 15 mil na primeira quinzena de maio.
Em teoria, o abrigamento é de responsabilidade dos municípios, com apoio, orientação e acompanhamento da Defesa Civil do Estado e da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social. Mas com a emergência em salvar vidas, muitos abrigos foram abertos pela própria população em escolas, ginásios, clubes e salões de festas, de forma improvisada e independente, sem ajuda do poder público.
Na Escola Sarmento Leite o abrigamento foi organizado por uma equipe totalmente voluntária, que transformou salas de aula em quartos para acolher de 6 a 12 pessoas. Instalou dois chuveiros, criou espaço de atendimento médico e depósito para roupas, produtos de higiene, cobertores e roupas de cama.
No início, ele era somente para mulheres e crianças. A iniciativa surgiu logo após os primeiros relatos e denúncias de abuso sexual nesses espaços de acolhimento coletivo. Na tentativa de garantir a devida proteção de mulheres e crianças, organizações envolvidas com a causa feminista mobilizaram a criação de locais exclusivos.
O Instituto E Se Fosse Você? criou um abrigo em Porto Alegre, e o Instituto Survivor e Me Too Brasil viabilizaram pelo menos três em diferentes cidades do RS. Um exemplo é a Casa Violeta, em Porto Alegre, com capacidade para receber 190 pessoas, que poderão ficar abrigadas por até um ano. O público-alvo são mulheres em condição de vulnerabilidade social, atingidas pelas enchentes, com filhas de até 18 anos incompletos e filhos de até 12 anos incompletos.
Cuidados especiais nos abrigos mistos
Depois de algumas semanas, o abrigo Sarmento Leite precisou receber as famílias das mulheres e seus animais, passando a ser misto. Mas elas continuam em maioria, pois os homens só são aceitos como parentes, não ingressam sozinhos. Por ser um espaço coletivo e desconhecido, algumas mães relataram o cuidado extra com a ida das crianças ao banheiro, por exemplo. E o espaço de recreação infantil fica em um lugar bem visível, no meio do saguão da escola, onde podem brincar – muitas vezes, com a supervisão de um voluntário.
Márcia Albuquerque, de 32 anos, chegou no abrigo Sarmento Leite quando ele ainda era exclusivo para mulheres, porque estava em busca segurança não só para comer e dormir, mas também para poder existir. É que ela sofreu transfobia no abrigo anterior. Quando o marido Anderson Pinto lhe deu um beijo, isso desencadeou comentários e “piadinhas” entre os outros abrigados e, até mesmo, de voluntários. As ofensas lhe causaram ansiedade, e decidiu que não poderia mais ficar lá.
No novo abrigo, Márcia foi bem recebida e logo se aproximou de Patrícia Zapelini (mulher que abre esse texto), com quem compartilhava o Quarto 1 e muitos desabafos. Uma dava suporte à outra. Ela gosta de oferecer a sua farofa apimentada na hora das refeições para dar o “toque nordestino”, por ser natural de Fortaleza, no Ceará.
“Eu sou muito brincalhona e gosto de fazer amizade, mas só com mulheres”, afirma. Márcia evita se relacionar com homens para preservar sua vida, intimidade e identidade. Ela reconhece o acolhimento que teve e lamenta que outras transexuais não tenham encontrado o mesmo durante a tragédia. Com tristeza, Márcia conta que pelo menos duas amigas morreram afogadas, uma em Porto Alegre e outra em Canoas.
Anderson, companheiro de Márcia, pôde ficar com ela no abrigo depois, mas eles não dormiam juntos, já que, mesmo tornando-se misto, os dormitórios no local são separados entre feminino e masculino. O casal está junto desde 2016 e mora no bairro Farrapos, na capital gaúcha. A água subiu no entorno do prédio deles, impossibilitando de entrar. Mas Márcia já planejava voltar para o apartamento, porque a água tinha baixado e o lixo reduzido.
Poesia no caos
Já Fiorentina Silva, de 72 anos, não sabe quando e se voltará para casa. Por enquanto, ela segue no abrigo Sarmento Leite, tentando manter alguns hábitos como levantar cedo, tomar café e admirar a frondosa figueira do pátio da escola. Ela imagina quantas situações a “mãe velha”, como chama aquela árvore, já presenciou: guerras, temporais, maus tratos. Fiorentina também já passou por muita coisa. Não é a primeira vez que ela tem que deixar a sua casa para se salvar.
Quando era pequena, ela viu seu pai colocar a família e alguns cabritos em uma canoa para fugir da enchente. Fiorentina fala que a força do pai naquele momento a marcou e a ensinou muito, assim como a figueira do abrigo. Em 2023, a residência em que Fiorentina morava em Porto Alegre pegou fogo e teve perda total. Sem um lugar fixo, ela passou a “morar andando”, um pouco na casa de cada filho. Estava na pequena cidade de Cachoeirinha, na região metropolitana, com as filhas e o neto, e quando a água tomou conta de tudo, tiveram que sair às pressas.
Sapateira de profissão, escritora por paixão, Fiorentina está sempre com um caderno “emendando letras”, diz. É onde ela dá vazão para a sua sensibilidade e observações. Ela também fala do cavalo Caramelo como exemplo. O animal se tornou símbolo da tragédia no Sul, pois passou dias em cima de um telhado até ser resgatado da enchente em Canoas. Para ela, o Caramelo representa a esperança de ser salva. Mais do que isso: em ser vista. “Só nos enxergam quando a gente tá na água prestes a sair boiando”, reflete Fiorentina.
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Política Nacional dos Deslocados Ambientais e Climáticos
As enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul trouxeram para a pauta política a necessidade de reconhecer e proteger as populações atingidas por eventos climáticos extremos. São pessoas que perdem a casa, o trabalho e, muitas vezes, precisam recomeçar a vida em outro lugar. Uma das iniciativas que surgiu no início de maio foi o Projeto de Lei que estabelece a Política Nacional dos Deslocados Ambientais e Climáticos (PNDAC), elaborado e protocolado pela deputada Erika Hilton, líder da bancada do PSOL – junto a organizações da sociedade civil, como o Instituto DuClima, a Resama e o Instituto Marielle Franco.
O projeto, que tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados, estabelece medidas para garantir saúde, moradia, emprego e educação aos atingidos por eventos climáticos extremos. “Isso é muito importante, porque, além de assegurar direitos básicos, também traz definições de nomenclaturas para as populações afetadas”, acrescenta Patrícia Grazziotin Noschang, professora e doutora em Direito Internacional, coordenadora do Balcão do Migrante e Refugiado da Universidade de Passo Fundo (RS).
Segundo o documento (PNDAC), os Deslocados Climáticos são migrantes forçados, temporária ou permanentemente, em situação de vulnerabilidade, deslocados de sua morada habitual por consequência das mudanças climáticas. O texto também define que quando acontece um evento climático extremo, os desalojados são os que seguem para a casa de terceiros em caráter temporário e os desabrigados são os que necessitam ir para abrigo público.
Patrícia Noschang acredita que o projeto apresentado na Câmara é um bom início de um longo caminho para os Deslocados Climáticos no Brasil. “Existe um despreparo muito grande do Estado como garantidor de direitos, o que acaba levando muitas populações ao abandono. Especialmente as mais vulneráveis, como mulheres e crianças.”