logo AzMina
17 de fevereiro de 2017

Nascem Flores no Asfalto – Capítulo 7: Quando percebi Alzira

Nessa distopia, reproduzir deixou de ser escolha. Acompanhe toda sexta a luta de quatro mulheres que resistem a que seus corpos sejam reduzidos a ferramentas.

Nós fazemos parte do Trust Project

[fusion_text]Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Nascem Flores no Asfalto”, de Mariana Lozzi. Leia os próximos capítulos aqui.

Arte: Entrelaçar em mim mesma, de Eti Pellizzari

Morrer demora. Deitada no chão, de bruços, com as calças molhadas, o cheiro de mijo me enchia de pudores. Estava morrendo e tinha pudores. Lá fora, Deus fechava as mãos sobre nossas cabeças e fazia a água cair descompensada, lavava as ruas sem comiseração das vidas pequeninas que se alojavam nos recônditos improváveis. Mais uma vez, tive medo. A morte, aquela distinta senhora, já tão perto de mim, roçava seus lábios contra os meus e sussurrava palavras inventadas no meu ouvido, olhava fundo nos meus olhos, tinha um dulçor só dela, queria-me consigo. Lenta, ela içava o brilho primeiro, suspendia da água a minha vida. Peixe, pétala, cristal.

Vidas pequeninas haviam se alojado nas quinas e curvas da minha vida – serpente original, de escamas reluzentes como unhas esmaltadas, lento sibilar, pesada maciez, ruído cintilante. Vida. Tantas foram, as minhas vidas, todas reais como se únicas, como se eu fosse capaz de só viver uma vez, como se rios pudessem correr sem afluentes, como se o começo principiasse sem fim, sem as nascentes, sem ser percorrido por córregos e capilares finíssimos, como se eu pudesse ser só uma.

Várias Cléias dividiram comigo o palco durante a dança maldita, durante o custoso resfolegar. Elas se alternaram no ritmo de ponteiros envenenados, deram as mãos e fizeram correr os anos. Eu fui muitas. Fui uma criança gorducha com olhos de avelã escondidos nas conchas das mãos, fui a garota de braços cruzados que mascarava a vontade de atirar pedras no lago e curtia terrível medo de ser notada, fui o emaranhado de nervos que percorriam o assoalho da pele da Cléia adolescente. Fui a esposa do Heitor, a mãe da Filipa, fui a avó da Lis.

Caso todas as Cléias se encontrassem não se pareceriam remotamente. Algumas delas vestiriam xales com estampas tão exuberantes que ofenderiam os tecidos monocromáticos das saias de outras Cléias, das mais modestas. Mas essas mesmas saias estranhariam as pernas diante delas, enfiadas em calças jeans. Aos vestidos e camisetões só faltaria rir uns dos outros. Não é só no modo de se vestir, porém, que as Cléias se diferenciam – algumas ainda não haveriam crescido, ao passo que outras já haveriam encolhido. Nos cabides do rosto estariam penduradas diferentes formas de medo, de amor e de sanha, de tédio também, de profundo tédio. Não posso garantir que as protagonistas da minha vida ao menos se gostariam, se as Cléias mais velhas perdoariam as mais jovens pelos erros que ainda haveriam de cometer, ou se as mais jovens conseguiriam disfarçar o pesar por aquelas que sobreviveram e, de tanto sobreviver, morreram em vida.

Penso naquelas que fui, nas que me foram, no turbilhão de mulheres que moraram em mim e em todos os anos durante os quais habitamos a mesma pele, em que coexisti­­mos, em que reprimimos umas às outras, em que nos engalfinhamos em desacordo, em que nos encolhemos com medo e choramos com fúria. Morrer demora. É um desligar de luzes tremendamente lento, a escuridão teima em não se fazer absoluta, sempre uma réstia, um luso-fusco pequenino no fundo de águas baças, uma ideia que desponta com langor de minhoca, que se arrasta preguiçosa no húmus. Nesse longo deixar de ser-me – sozinha, coberta de mijo, a ouvir a chuva derrubar as árvores da cidade – uma das Cléias veio em mente. De súbito, ela se fez maior que as outras, cresceu diante dos meus olhos no palco em que meu passado rodopiava de pés descalços. Olhei-a na face e me lembrei de ter sido dona daqueles mesmos olhos. Lembrei-me de Alzira.

Ela navegava pequenina no colo da manhã, dormia passarinha, metida em ninho de lençóis. Eu achava que acordar ao lado de Alzira seria um aleluia doido no peito, e que à felicidade de dividir a cama com ela se misturaria a um medo antigo, um pesar que me punha doente, com as mãos apertadas no estômago. Ao primeiro sinal da manhã eu ficava de joelhos na cama e fechava as cortinas. Dizia que era para impedir a luz de entrar, quando tinha medo mesmo é de que Alzira quisesse sair caso abrisse os olhos para ver o colorido das ruas, caso percebesse que já era dia e se sentisse chamada pelos faróis dos carros, pelo vaivém desordenado dos primeiros suspiros da cidade. Eu forjava noite no quarto para tê-la comigo um pouco mais, para que acreditasse que ainda era cedo, que éramos jovens, que tínhamos tempo.

Anos mais tarde eu me perguntaria seguidas vezes: Quem foi Alzira? De tanto pensar nela nasceu em mim o medo de tê-la esquecido há tempos e fabricado outra Alzira para pôr no lugar da primeira, artimanha para não me despedir da impressão de que havia algo delirante ligado a esse nome, a essa lembrança agora tão incerta. Quando já havia me posto velhinha, com o corpo frágil e a cabeça aérea, Alzira perdeu o status de pessoa e passou a viver em mim como uma porção de outras coisas, sensações que desabrochavam sem nome, mas agora poderia chamá-las: Alzira.

Sentada no sofá de nossa casa, ela se servia de gim enquanto deixava vazar a risada rouca, sua marca. As festas que eu e Heitor dávamos não estariam completas a menos que Alzira atravessasse a porta com os cabelos cacheados presos para cima e o hábito de cantarolar melodias que ela inventava sem perceber, com as mãos metidas nos bolsos do sobretudo amarelo. Nossos amigos a puxavam para dentro tão cedo reconheciam sua voz, tomavam-na para dançar e da boca de Alzira vazava a primeira risada da noite. O som me guiava até ela.

As festas escassearam depois que Filipa nasceu. A alegria de ver estranhos reunidos na sala – coisa mais minha – tornou-se mote para um desconforto de corpo inteiro, vontade de me liquefazer e vazar pelo vão das tábuas do chão, virar mancha de umidade ampliada abaixo de todos os corpos, uma sombra bolorenta, presságio. Quando ouvia vozes sobrepostas o coração dava de bater descompensado, os ouvidos zuniam e a cabeça pesava, eu deixava o corpo traçar queda lenta até a cama e descarrilava em mim um pranto macambúzio. Quanto ouvia o meu lamento, Heitor ia ter comigo enfurecido por uma mulher feita fazer estardalhaço nas cobertas, bramia que era direito dele estar com amigos e que desde que parira eu havia virado refém da tristeza, fantasma de um só cômodo. O choro do neném se assomava ao meu, gritávamos as duas e os amigos de Heitor deixavam a casa, ao que ele ia atrás, praguejando. No dia seguinte, quando a febre do whisky havia deixado o seu corpo, era Heitor quem chorava com a cabeça entre as mãos. Pedia desculpa e se dizia envergonhado para uma vida inteira, da sua fronte escorria suor doce. Ele me puxava para perto de si e eu tombava com ele na cama, dormiríamos dia adentro.

Quando era ao lado de Alzira que eu me deitava, a cabeça teimava em ficar acesa. Ela ressonava ao meu lado e eu ascultava o seu respirar, reparava nos tremeliques das pálpebras, nas veias mínimas que se revelavam à meia luz. O semblante sério fazia graça em mim, parecia que estava metida com a mais fina matemática, a encadear equações impossíveis. Acordada, ela soprava minha franja e eu me fazia de magoada, pensava em coisas bonitas para dizer, mas as palavras teimavam em fugir de mim, viravam vaporzinho sutil e eu não conseguia fazer Alzira entender que, perto dela, eu me entregava a um riso alérgico, a uma compulsão absurda de rir por dentro, como se uma mão de veludo fizesse cócegas em membros invisíveis e o toque dela se tornasse a coisa mais triste e mais bonita do mundo. Quando eu me punha a perseguir palavras que não existem, ela me dizia que eu parecia amuada, que às vezes uma sombra atravessava os meus olhos e ficava difícil ver através deles.

Lembrar de quando comecei a amar Alzira é por demais difícil. Perdi o rastro de como principiou esse gostar, se foi no dia em que ela tirou os sapatos dos pés e os chutou para longe, se foi durante uma xícara de café especialmente forte, ou se começou quando ela disse que tinha fascínio por girafas e eu desejei ser uma. Com o passar do tempo veio a ideia de que esse sentimento sempre existiu em segredo, incubado em mim, que mesmo antes de conhecê-la já existia a Alzira e ela apenas esperava para ser descoberta.

Quando correu a notícia que a Filipa havia nascido Heitor deu a maior festa de todas, convidou nossos amigos ao apartamento e brindou com vodka vezes seguidas, até esquecer o que os punha ali, de pé, diante uns dos outros, a erguer copos e bramir felicidade. Chafurdaram as gargantas em álcool e as narinas em pó enquanto eu travava a maior de todas as batalhas com a minha via crucis, enquanto desejava que a morte se debruçasse sobre o meu corpo naquele leito de hospital e me beijasse com gana de me ter com ela no buraco enfurecido de Deus. Algo me rasgava por dentro, desfiava minha carne com apetite e demora, fibra por fibra.

Esperei sozinha no quarto com Filipa adormecida nos braços, os olhos dela ainda fechados, recém-saída do primeiro banho. Passei a noite no hospital, metida em uma fralda forrada com gazes. Não me deixavam ver o que havia sobrado das minhas vergonhas por mais que eu pedisse, olhavam-me como se acobertassem um crime e eu, testemunha, tivesse que ser silenciada. Quando as enfermeiras me visitavam tinham o hábito de procurar a porta do banheiro com os olhos, acreditadas que o meu acompanhante teria entrado ali e sairia a qualquer momento, para segurar a neném nos braços e me dar descanso.

No dia seguinte ao da parição, quem atravessou a porta da enfermaria não foi Heitor, mas Alzira. Dessa vez ela não cantarolava, tinha a boca em chispe, os olhos fixos em mim, não olhou nenhuma vez para o bebê. A primeira coisa que fez foi escorrer as mãos pelos meus cabelos, ela desembaraçava os fios entre os dedos, afastava a franja da cara, como se fosse de uma boneca que cuidasse e a quisesse livrar do desalinho e do esquecimento, mantê-la sempre bonita e perfumada. Alzira então disse que o Heitor se pôs tão feliz, mas tão feliz pelo nascimento de Filipa que exagerou na alegria. Reportou que o nariz farináceo do meu namorado entrou em colapso, que a sede amarga da sua garganta o traiu e que, entre uma gargalhada e outra, tombou no chão.

O Heitor vai ficar bem, Cléia, limparam o estômago dele, foi só susto, ela me dizia, com o respirar próximo à minha orelha. Apesar da certeza de que o Heitor se recuperaria para aspirar novas farinhas, ele ficou uma semana internado. Acordava para vomitar e voltava a submergir em sono opaco antes que pudesse reparar em mim e nos meus braços pendentes, nas mãos enfiadas em luvas de borracha, na sombra turva espetada no chão do quarto. Eu era uma haste sem bandeira.

Nos momentos de vigília, fantasiava o que ele diria quando visse a nossa filha, pequena e vermelhusca, a agitar as mãos de unhas mínimas no meu colo, aflita por leite e alheia ao fato de que tinha um pai que não se aguentou de alegria quando ela nasceu, pulou da plataforma onde se acotovelam os vivos e foi flertar com a morte. Imaginava-o sentado no sofá da nossa casa com o tronco retesado, pura tensão, o bebê no colo. Ficaria apavorado, refém de uma numa anti-naturalidade que me empanzinaria de graça. Mas quando ele olhasse para a cara embatumada da nossa filha entenderia. Entenderia que ela abrigava sentimentos demais dentro de si, que sua consciência era nascedouro de imagens fantásticas e era só por não conhecer a própria voz que ela nãos nos comunicava as sensações que a percorria sem trégua. Filipa era um mistério lindo.

Alzira passava no nosso apartamento de manhã para me dar notícias do hospital. Todo o dia ela dizia que o Heitor parecia particularmente menos morto, que havia ganhado alguma cor, que os médicos davam notícia que despertaria em breve. Heitor acordou há tempos, Cléia, só finge que dorme porque sabe da surra que lhe aplicaremos quando atravessar essa porta, então se faz moribundo, o coitado, brincava Alzira, e eu deixava um sorriso vazar pelo canto da boca.

Ela passou a trabalhar no turno da tarde para reservar as manhãs comigo e com Filipa. Dizia que havia criado amizade pelo bebê e jurava que a achava inteligente, de uma esperteza muito sensível, como a dos cães. Eu a acusava de comparar minha filha com um cachorro e ela ria sem misericórdia dos meus ouvidos.

Comecei a perceber Alzira para além da mulher que subia as escadas do nosso prédio com uma garrafa de vinho quando das paredes do apartamento emanava um blues rasgado e a noite pairava sobre nossas cabeças como se os planetas todos fossem capazes de se depreender do céu e nos engolir a qualquer momento. Ela foi mais uma entre a legião de estranhos que acabou ali guiada pelo choro das guitarras, convite sussurrado por bocas invisíveis, incubado nos escapamentos dos carros, diluído na água encanada que percorria os veios da cidade. Em noites como aquelas, pessoas atravessavam a nossa porta, subitamente pertencidas aos retalhos do pequeno apartamento. Acreditávamos que um lastro invisível na trilha das madrugadas conduzia estranhos até nós, que a nossa estranheza gritava pela deles em uma frequência notiva, que, uma vez que eles ouviam o chamado, nada mais fazia sentido a não ser sentar no chão empoeirado e beber vinho quente direto da garrafa.

O apartamento em que Filipa cresceu era muito diferente daquele em que passávamos as noites entregues ao estupor dos comprimidos coloridos a derreter embaixo das línguas. Heitor e eu nos tornamos uma família, cuidamos para que não nos ausentássemos de nós mesmos tempo demais, para que voltássemos sempre para casa. Éramos parecidos, gostávamos de atravessar as madrugadas descalços, de pisar em espinhos. Envelheci o bastante para conhecer Filipa e alguns dos mistérios que transitavam em seus olhos, conheci a ela e a Lis, que nasceu pequena, cheia de fome e assustada demais para chorar. Lis era outro mistério lindo, eu temi por ela tanto quanto a amei.

Desde o dia em que beijei o seu torso nu pela primeira vez, continuei a me encontrar com Alzira, e assim foi durante o carrossel desgovernado dos anos. O susto maravilhoso de submergir no corpo dela aos poucos se transformou em uma coisa outra, forjada com o tempo, em uma vontade de, assim como ela desembaraçou meus cabelos entre os dedos naquele hospital, cuidar para que Alzira se conservasse forte e luminosa, para que nunca caísse em desamparo ou conhecesse as águas do rio que margeia o esquecimento. A cada dia descobríamos nos rostos uma da outra marcas de expressão que se renovavam, sinais do tempo multiplicados, rugas aprofundadas, cabelos que se fechavam em pérola. Ríamos e nos revoltávamos com essa coisa de envelhecer, custávamos a nos encontrar nas mulheres que sorriam em fotos antigas, que seguravam Filipa no colo ou a perseguiam pela casa tardes adentro. Filipa.

Quando minha filha morreu, Alzira também silenciou dentro de mim. Ela me segurou pelos ombros e vezes seguidas me sacudiu, como se para testar se eu estava oca. Nada. Nenhuma resposta, só o assobio que emanava na superfície do poço seco em que eu me refugiara. Aquele poço foi meu lar por anos, habituei-me à sua miséria e podridão, aos desníveis e aos escuros, ao silêncio, principalmente ao silêncio. Alzira nos visitava todos os dias e cuidava para que Heitor e eu não dormíssemos demais e perdêssemos a infância de Lis. Dava-me banho, garantia que a geladeira não estivesse vazia e, durante algumas noites, dormiu com Lis, para impedir que os pesadelos a devorassem no auge dos sete anos. Na época em que pertenci ao estômago do poço seco, os dias se igualavam às noites e o tempo não passava de uma esteira lisa, sem solavancos, que se aprofundava no oco das nossas gargantas. Um dia, enquanto me vestia no quarto, eu a cuspi. Eu a cuspi uma, duas, diversas vezes e gritei o grito mais fundo de que era capaz. Alzira sentou na beirada da cama e chorou choro de criança. Nunca mais a vi.

Desde então eu a perseguia em sonhos. Se fechava os olhos, era o recorte dos cabelos dela que se costuravam à minha retina, a ideia de que os cachos de caramelo da Alzira não estariam tão longe, de que eu voltaria a encontrá-los quando menos esperasse, durante uma caminhada desavisada na rua, em uma fila de supermercado, em uma visita ao médico. Não a encontrava. Com o tempo, passei a acreditar que me manter viva foi o jeito que Deus encontrou de me castigar por não ter proibido a Filipa de morrer, por não ter cuidado melhor da Alzira, por ter feito tão pouco do amor do Heitor. Mas ainda havia a Lis, eu pensava, e de súbito conseguia me ver longe do poço seco. Ainda havia a Lis, que era valente demais para esse mundo, que perigava se machucar a cada passo que desse, bater com os ossos nas quinas projetadas daquele novo mundo que havia engolido a todos.

Morrer é lento. Lento o bastante para pronunciar uma última vez: Alzira.

[/fusion_text]

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Faça parte dessa luta agora

Tudo que AzMina faz é gratuito e acessível para mulheres e meninas que precisam do jornalismo que luta pelos nossos direitos. Se você leu ou assistiu essa reportagem hoje, é porque nossa equipe trabalhou por semanas para produzir um conteúdo que você não vai encontrar em nenhum outro veículo, como a gente faz. Para continuar, AzMina precisa da sua doação.   

APOIE HOJE