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20 de janeiro de 2017

Nascem Flores no Asfalto – Capítulo 3: Anatomia do não

Nessa distopia, reproduzir deixou de ser escolha. Acompanhe toda sexta a luta de quatro mulheres que resistem a que seus corpos sejam reduzidos a ferramentas.

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[fusion_text]Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Nascem Flores no Asfalto”, de Mariana Lozzi. Leia os próximos capítulos aqui.

Arte: Unimpaired

Abriu berreiro quando eu havia começado a pegar no sono. Cruzava a linha entre as notas mentais sobre o próximo dia e a primeira fantasia, momento em que minha voz se perderia na frequência de outras vozes, música despontaria do chão e, aos poucos, eu ascenderia ao reino dos absurdos. Estava viciada em sonhar. Metida nos lençóis, as paredes do apartamento se abriam como faces de uma caixa de papelão e eu caminhava desimpedida rua afora, paisagens se alternavam diante de mim enquanto me afastava do prédio onde, através de uma janela no nono andar, um bebê chorava.

Os sonhos eram modestos, de uma simplicidade comovente. Uma vez, Lis riu até faltar ar quando a contei que, nas minhas fantasias, eu entrava em um elevador e as portas se abriam para revelar minha antiga mesa no escritório. Eu me sentava sem cerimônia, ligava o computador, respondia e-mails, marcava reuniões e, quando o desconforto dentro do sutiã me obrigava a sacar a bomba de leite, saía café de mim. Café preto vazava das tetas.

Desde que as cólicas do Leozinho começaram a dar coices nos seus interiores não fui capaz de dormir mais de três horas seguidas. Assim que do meu filho despontou o primeiro grito e eu fui apresentada ao seu atestado de vida, o tecido das noites foi rasgado. Depois de fazer algazarra com a garganta, refestelado no banquete dos seios, ele adormecia nos meus braços no cume da madrugada. Mergulhava em sono limpo, voo pleno, decolagem lisa, sem solavancos.

Naquela noite, porém, deitei-o de bruços no berço e, com a cabeça repousada nos travesseiros, lutei para ficar acordada. Temia que a claridade do dia seguinte me encontrasse desavisada, com o corpo morno e pesado enrolado entre os cobertores, sangue lento e espesso a navegar pelas veias, olhos vendados, censurados pelo véu dos sonhos. Temia que o chamado do meu filho falhasse, que ele também se entregasse ao cansaço e, pela primeira vez, esquecesse de gritar, ou que a minha paspalhice me impedisse de ouvi-lo. Desde que parei de dormir, sonhar me enchia de medo. Pensava: E se, durante um cochilo profundo no meio da tarde ou num fechar definitivo de olhos à noite, a realidade se fizesse estranha, uma eterna desconhecida? E se eu tomasse gosto pelo reino dos absurdos e me decidisse por não acordar? E se isso acontecesse justo na manhã em que, mais do nunca, era preciso despertar?

Contei nos dedos quantas horas faltavam até que o primeiro ônibus desacelerasse diante da parada em frente ao apartamento e abrisse as portas. O coração dava pinotes dentro do peito, eu antecipava o ar frio da manhã a roçar minha nuca, as caras pardacentas dos passageiros, a marcha organizada dos vendedores ambulantes, o despertar rouco das ruas. Quando os escuros da noite fossem lavados por um azul mais tenro e vazasse dia através janela do quarto, eu já estaria de pé, pronta para cruzar a porta de entrada e chamar o elevador.

Com o telefone preso entre a orelha e o ombro, eu desenrolava a meia calça panturrilhas acima, puxava o tecido transparente com gana de alongar os fios, furiosa por não conseguir obrigá-los a abraçar minhas coxas e estacionar na curva da cintura. Na barriga, um mosaico de estrias era interpelado por uma cicatriz alta, de retidão matemática. Com os cabelos frescos do banho, fui ao encontro do espelho e devolvi a provocação do reflexo, que me mirava, irascível. A garganta estreitou, como era de praxe quando me fazia valente o bastante para ter com a Ana do espelho.

O susto de me descobrir jovem era maior que o espanto pelas olheiras escuras ou pelo cabelo sem corte que começava a tampar as vistas. Trancada no apartamento e empenhada em evitar espelhos era fácil esquecer minha idade real. Convivia tanto com a Ana dos meus pensamentos – que era feita de brisa, pura abstração, matéria para poucos sopros – que passei a me entender velhinha. Imaginava-me encolhida com a pele amassada, a desempenhar as tarefas do dia com muito esmero, capricho cansado, atenta aos giros do relógio, preocupada com as trapaças do tempo. Do lado de fora do apartamento eram tantas velhinhas a tatear as calçadas com bengalas e andadores que se tornou um alívio encontrá-las na rua ou no supermercado ainda cedo na manhã, a escolher verduras e reclamar dores. Acenavam tão logo reparavam que eu havia me tornado mãe. Vinham ter comigo, afoitas para dar conselhos e palpitar, para segurar minhas mãos e acariciar meu cocuruto quente de sol. Passei a retribuir os pitacos e firmávamos amizade ligeira, que durava o comprimento de uma fila. Elas me salvavam muito.


Vai receber quantos créditos? Perguntei à garota sentada no sofá. As pernas finas se cruzavam com constrangimento educado, parecia que temia ocupar espaço, deixar marca sobre os tecidos ou lastro de perfume no ar. Com os olhos fixos na silhueta diminuta de Leozinho, ainda adormecido em meus braços, reagiu à provocação: Nenhum, mas se a gente não cuidar de pelo menos três deles por semestre nos reprovam, tá no novo Estatuto. Parece motivação o bastante para não matar o meu filho – pensei, enquanto arrancava do corpo a meia calça e a saia plissada e pegava uma calça jeans. O par de olhos graúdos da visita se derramou sobre o meu corpo, a cicatriz na barriga recuperou sensibilidade de corte fresco, acusava a proximidade das pestanas da outra.

Na minha época as garotas estagiavam em creches e maternidades Estatais duas vezes por semana, independente do curso que haviam escolhido. Começava assim que entrávamos na universidade. Os garotos podiam se matricular em outras matérias ou vagabundear, ficava a critério deles, mas nós tínhamos que nos reporta duas em ponto para embarcar nos ônibus. A rota não mudava.

Quantos anos você tem?

Trinta.

Só um filho?

Só um filho.

E pode isso?

Negociei dois anos de empréstimo para parir o segundo porque preciso voltar ao trabalho, caso contrário colocam algum energúmeno no meu lugar. Eles não costumam dar cargos como o meu a… Algumas de nós precisam tirar licença para parir todo ano, a contabilidade não fecha, mais fácil não nos contratar, evitar despesa.

Pois eu quero ter quatro de uma vez, fazer mitose insana como os corais, espirrar os filhos em sequência assim que completar dezoito anos. Não quero que me torrem os pacovás, que me falem sobre o dígito e as prisões, estou farta dessa conversa. O meu médico antecipou que vou ser aliciada, dizem que ele nunca erra, então melhor mesmo é me preparar. Dona Ana, não sei como conseguiu esperar tanto tempo, dizem que os descontos são incríveis a partir do segundo filho.

Leozinho acordou com um engasgo e armazenou fôlego o bastante para lançar lamento agudo no ar. Vazou leite do sutiã, filetes mornos escorreram pela blusa antes que pudesse arrancá-la do corpo e estancar a umidade. Praguejei com força, a menina cravava os olhos em mim, não conseguia decidir se ela me provocava piedade ou sanha. Arranquei uma camiseta do cabide e segurei o menino no colo forçando-o de encontro ao peito. Nasceu enamorado das propriedades mágicas do grito, o meu filho. Através da janela da cozinha era possível ver os velhinhos amontoados na calçada, à espera do primeiro ônibus do dia. Volta que horas? A garota perguntou antes que eu fechasse a porta atrás de mim e seguisse em trote afobado em direção ao elevador.

Em qual andar a senhora disse que trabalha? Oitavo, divisão de marketing. Era a terceira pessoa que entoava a pergunta desde que a porta de vidro rejeitou o meu polegar.

Ao cruzar a recepção senti que os ponteiros do relógio traçavam caminho reverso e a memória dos pés se sobrepunha ao caminhar do agora, tão certa estava que encontraria minha mesa inalterada, a caneca de café com a marca fresca do batom e um pacote de balas fechado na última gaveta. Quando a barra de metal fez pressão dolorida sobre os ossos do quadril e a porta se recusou a abrir, porém, o par de pés que caminhou até o elevador pela última vez se separou daquele que tentava alcançá-lo.

O sol se levantou soberano, chegou ao miolo do céu e os corpos se mesclaram às sombras até engoli-las. Vi-me sozinha em uma redoma de vidro a olhar para as pontas dos dedos como se lixas invisíveis tivessem apagado os sulcos mínimos que os diferenciavam de outras mãos, de outras consciências, de outras Anas. Trinta anos, um filho, uma dívida, um empréstimo, um contrato, um emprego. Trinta anos, um filho, uma dívida, um empréstimo, um contrato, um emprego.  Exigia das máquinas saudade.

A cólera escapuliu da caldeira do estômago, escalou a garganta e, antes que eu me desse conta, jorrou em borbotões. Encontrei-me aos gritos no centro do saguão iluminado. Abri berreiro em imitação à zanga noturna de Leozinho, mãe de sua fúria. Ordenava à porta automática que me deixasse passar, que me reconhecesse, que me respeitasse, que me perdoasse e me absolvesse pelos pequenos crimes.

Mendiga de dentes brancos metida em camisa de seda, rogava às pessoas ao redor que me emprestassem polegares para que pudesse subir e esclarecer a situação com o chefe. Os funcionários direcionavam olhares ao meu busto e encontravam manchas de umidade a se alastrar em pranto leitoso. Constrangidos, ignoravam-me ou sugeriam que fosse para casa cuidar do bebê. Os menos apressados adiantavam que os sócios não me deixariam voltar à empresa assim tão cedo, que as normas internas se intensificavam com o virar das semanas. O império do sol começava a traçar queda lenta, as janelas lavavam-nos de luz e as máquinas de esquecimento.

No sistema consta que a senhora está de licença para parir. Sim, fui parir, mas a parição acabou faz tempo e a data marcada para o meu retorno é hoje, decerto os broncos se esqueceram de alterar, deixe-me entrar para ir ter com eles, são uns coitados, a culpa não é deles, mas também não posso dizer que é por excesso de brilhantismo que fazem essas coisas. No sistema não consta previsão de data de retorno, senhora. Deixe de pasmaceira, trabalho aqui há cinco anos. No sistema não consta há quanto tempo trabalha aqui.

Ana? Ana, querida, vá para casa, está cansada, não vê que passou dos limites? Acusa que seu retorno era hoje, mas agendamos isso há tanto tempo, era uma data provisória, fico surpreso que tenha lembrado. Você adormeceu no sofá, tombou em sono profundo enquanto esperava, fica claro a qualquer um que ainda não está em condições… Não, querida, não se preocupe com a volta, a firma é muito compreensiva com as mães, sabe disso, podem estender o tempo de licença em até cinco meses adicionais, na verdade é recomendado que façamos isso, ficou sabendo das mudanças no regimento? Onde está o bebê? Pois então, o melhor lugar para ele é com a mãe, você deve cuidá-lo, não fica bem que peça ajuda assim tão cedo, ainda mais para as escolares, sabe disso, não quer que façam juízo errado, afinal, conhece as multas… Entendo, agora descansa a garganta e escuta, escuta o que digo porque sou seu chefe, seu amigo, porque te quero bem… Não me interrompa, estou falando, mulher. Pois bem, as regras se estreitam e sabe como o regimento opera, não é inocente a esse ponto. Cada vez menos querem mães acima do sexto andar, ainda mais as recém paridas, conhece as inspeções, o procedimento, as auditorias, sabe como são rigorosas. Vá para casa, quando for hora entraremos em contato, por enquanto a prioridade é o bebê… Não, não se afobe, não contarei a ninguém que esteve aqui, já pedi aos seguranças que apagassem o registro da sua chegada e as reclamações dos funcionários. Agora sossegue, pare de chorar, pois antes de descer chamei um carro, então assim que chegar em casa troque de roupa, está com a blusa molhada e não quero que se resfrie. Pronto, olhe que modelo bonito, é italiano, podre de chique, vê os pneus, vê as maçanetas, percebe o trabalho manual, a finesse? Eles guardam esse para os sócios, os figurões, sabia disso? Pronto, assim é melhor, vê como te temos em conta? Aqui, querida, pernas para dentro, cuidado para não bater a cabeça, vá lá…

As portas do elevador se abriram não para revelar minha antiga mesa no escritório, uma caneca de café ainda molhada ou um pacote de balas intocado na última gaveta, mas um corredor vazio. O corpo estava maltratado como se tivesse atravessado estradas de terra no furor de carros leves. A cabeça latejava, os ouvidos zuniam quentes, o coração, macilento, bombeava sangue ralo, tambor anêmico. A porta do apartamento se abriu em um estalo e me deparei com Lis do outro lado. Ela me deitou no sofá, tirou meus sapatos, repousou as mãos sobre o ventre e disse: Vou ter um filho.

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* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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