logo AzMina
16 de março de 2017

Nascem Flores no Asfalto Capítulo 10: Atrás da palavra

Nessa distopia, reproduzir deixou de ser escolha. Acompanhe toda sexta a luta de quatro mulheres que resistem a que seus corpos sejam reduzidos a ferramentas.

Nós fazemos parte do Trust Project

[fusion_text]Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Nascem Flores no Asfalto”, de Mariana Lozzi. Leia os outros capítulos aqui.

 

black-and-white-person-woman-girl

Foto: unsplash.com

A senhora afirma que já viu a mulher sentada à sua frente?

Foi.

A senhora reconhece que a viu na escola dos seus filhos, a quebrantar as janelas às vassouradas?

Uma vez me disseram que vidro era caspa caída da cabeça de Deus.

Senhora?

Como se o vidro tivesse memória da cabeça Dele, por isso nos atravessasse a pele.

Senhora, por favor, responda a pergunta. Reconhece a acusada?

Sim.

Reconhece que foi ela a responsável pelo ataque à escola dos seus filhos?

Reconhecer é revisitar o ver? É transformar o aquoso dos olhos em engenharia séria, lente para exageradas distâncias? Dá pra reconhecer sem ter conhecido? E conhecer? É o que sucede ao ver depois de enxergar? Mas a distância entre ver e enxergar não se desconhece a si? Como conhece a todo desconhecimento, porque o foi antes de vê-lo?  E só o reconheceu porque quis enxergar? Enxergar o que se reconhece antes mesmo de ver?

Senhora?

Eu conheci uma mulher que contava uma história assim: Na vila mais linda de todas, no topo da montanha mais alta de todas, vivia um homem que morria de medo de coisa demasiado linda e demasiado alta. Um dia, perguntaram a ele: Mas por que o senhor invocou de viver justo dentro da maior boniteza em cima da maior alteza do mundo? Sabe o que o homem respondeu?

Está fugindo do assunto, senhora, não é por isso que a Corte entrou em sessão.

Ele disse que, metido lá na vila bonita com a montanha alta, as coisas todas do mundo ficavam adornadas de feiúra e baixeza, do próprio jeito que ele carecia que elas fossem. Ao homem, que era devoto de coisa feia e miúda, bastava pensar em qualquer lugar longe da vila para se pôr muito feliz.

Senhora Olívia, o que sucedeu no dia em que se cortou com vidro? Lembra-se por que perdeu os dedos do pé esquerdo?

Choveu caspa da cabeça de Deus. Talvez ele estivesse resfriado, metido em cama de nuvem, ou com um terrível caso de piolhos celestiais. Talvez tivesse principiado a trocar de pele, talvez tenha sido visto e sentido necessidade tremenda de se reinventar, para que não o desenhem a boca, para que permaneça desconhecido para a besta-homem. Capaz que vai se enfiar em um casulo como o das lagartas, para reaparecer animal outro, metamorfose divino-insetal, de fazer nascer asas, todo borboleto. Será que Deus volta mulher? Por tanto tempo Ele foi homem.

Vossa excelência, está claro a um qualquer que a testemunha está indisposta. Ela recebeu alta do hospital somente ontem, ainda está muito abalada, mal teve tempo de cuidar dos filhos, é de conhecimento geral que esse tipo de desventura é prejudicial ao juízo das mulheres.

Está louca.

Bestagem, vossa excelência, só se pôs emocionada e grata por voltar ao seio do lar, junto ao marido e filhos.

Vou perguntar mais uma vez, antes de dispensá-la. Senhora Olívia, onde estava na tarde de 4 de março, há exatos vinte e três dias?

Eu estava atrás da palavra.

Com todo respeito, senhores do júri, acreditam que essa mulher tem ciência do que diz?

Ciência é como Deus chama seus portas-copos.

Senhora!

É assim que ele bebe placenta. Não quer deixar manchas.

Testemunha dispensada!

Quando me pediram para levantar da cadeira almofadada e andar entre as gentes sentadas em longos bancos não me importei. Queria mais era suspender os pés e tirar as gazes. Estar sozinha com o meu cotoco era a coisa de que eu mais gostava. No hospital, acusava coceiras e fisgadas no pé esquerdo para que as enfermeiras suspendessem os curativos tempo o bastante para constatar a falta de dedos. Elas então se cobriam de solenidades para com meu cotoco, diziam toda sorte de coisas para amenizar a saudade dos dedos. Não se preocupe, dona Olívia, ainda dá para usar sapatos fechados, até os saltos altos, basta colocar enchimento na frente e pronto, ninguém vai saber.

A verdade é que, sem dedos do pé, eu me sentia cada vez mais feita à semelhança das bonecas, cujos corpos desvelei sozinha. Imaginava meu cabelo a descer pelos ombros, escorrido e brilhantudo em fios de náilon, os olhos enormes congelados num susto muito azul, os peitos duros como nunca se viu, sem cerejas, pura lisura, lataria das mais duvidosas. A minha cintura se encolheria em ampulheta até esmagar os órgãos todos, a bunda e a racha desfeitas no decreto do plástico, nenhuma fenda, nenhuma pinta, nenhum pelo. E os pés eternamente arrebitados, à espera de um salto-alto que se interpusesse entre a agonia dos calcanhares suspensos e o chão. Sem dedos, sem unhas. Meus pés.

Andar sobre o vidro descalça foi a coisa mais custosa de todas, quase tão agonia do corpo quanto a parição dos filhos, calafrio absoluto, choque de fazer retesar os dedos, cubos de gelo a entupir os rins, um agudo aguacento que se aprofunda a cada passo, dor além do grito, grito atrás do silêncio da dor. Mas eu tinha diante de mim os mesmos olhos ciganos que lançaram luz sobre o meu rosto mais cedo. Era ela.

Ver a faxineira explodir as janelas com o cabo da vassoura era tarefa por demais absorvente. Os cacos de vidro choviam sobre o cabelo dela, cabelo-raiz que crescia avesso, natureza das mais nuviosas, das mais lindas. A cada janela explodida, vozes diversas gritavam atrás da minha cabeça, urgentes como o coaxar de muitos sapos. O corpo da tarde, já liquefeito no céu, derramou-se inteiro sobre ela. Nenhuma gota de luz escapava da faxineira, ela continha em si o branco de mil sóis. Tão cedo a luz beijava o vidro, o vidro virava água. Chovia muito sobre nós.

Assim como ela não antecipou o lastro vermelho da minha aproximação, não percebeu quando os cinco homens fardados correram em sua direção com a fome de cachorros selvagens. Prenderam-lhe os braços com sanha de partir as fibras e suspenderam o corpo escuro sobre as cabeças. Era possível ver que se puseram felicíssimos de tê-la entre as mãos quadradas, queriam judiá-la sem trégua, fazê-la dançar sobre as caspas caídas da cabeça de Deus. Mas eu gritei. E me fiz testemunha.

Olívia, o que se passou no tribunal?

Fui dispensada, acreditaram-me cansada demais, amputada demais.

O assessor disse que você não fazia sentido das coisas, que não reconheceu a louca que atacou nossos filhos às vassouradas.

Ela atacou somente as janelas, nossos filhos não são de vidro.

Tem ideia de quantas pessoas assistiram ao julgamento? Da palavra que corre dentro do Congresso? Dos olhares? Da procura dos jornalistas? Querem fazer manchete em cima do seu alheamento, desejam-na louca, vegetal, eles têm sanha de destruir a nossa família, os miúdos, a campanha. Tem dimensão da própria asnice? Sabe quantos doutores d’alma vieram ter comigo, quantos querem palavra com você? E não responde? Fica a me olhar com cara de sofá? Sofá velho de espuma escura, cheiro de ácaro, de pustulento mijo? De mijo, Olívia?

Fernando queria me surrar mais que tudo. Dava para ver que a vontade maior dele era fazer deslizar o cinto para fora das calças e me esquentar as costas, as coxas, todo lugar que não o rosto e as mãos. Até o meu cotoco ele acertaria, de tão emputecido que se pôs comigo por ter ficado doida. Ele só havia me surrado duas vezes até então, e fez voto que foi a motivo de merecimento.

Esse mesmo voto eu repetia quando assomava em mim o medo de ter com os punhos do meu marido. Nas duas vezes em que me martirizou ele estava sóbrio, com o nariz longe das farinhas e a garganta seca de álcool. Desceu sobre meu estômago os nós dos dedos com perícia matemática, explicou que queria deixar marca correta – nem muito grande, nem muito pequena – merecida. Depois que vomitei a dor no tapete do quarto ele me beijou as mãos e disse que tudo ficaria bem contanto que não abrisse mais as pernas para o rapaz das plantas, não importava quão bonitas fossem as flores que ele fazia crescer no beiral da janela do quarto.

Ele sabia que eu gostava demasiado do moço jardineiro, que preferia vê-lo trabalhar a terra a acudir as destemperanças dos meus filhos, engalfinhados uns nos outros tardes a fio, metidos em brigas infindas. Era mais calado que o silêncio em si, ficava horas a fio de cócoras, perdido entre as pequenas folhas que esmiuçava nos dedos sujos. Uma vez eu disse que o achava o homem mais bonito de todos, porque tinha olhinhos de avelã, muito brilhosos embaixo do sol, e que as mãos dele faziam carícia tão doce na terra que haveriam de nascer morangos onde antes só havia mato. Por que não sorri, sendo assim tão lindo? Ele disse que estava doente dos dentes, que alguns haviam descolado da boca, e que, por isso, o sorriso dele era como pesticida para gulosas pragas. Pensei nas minhas bonecas, com os dentes bem guardados dentro das bocas. Ele não queria me dizer o nome, então passei a chamá-lo de Moço.

Eu divido nome com o meu pai, o sujeito mais disparatado que já cruzou caminho com o meu. Ele tem ideias caducas, os humores espezinhados, em desalinho de grama seca, sempre arranjado para apostar carreira com o demo rumo a bandas contrárias. Achava mesmo é que os nomes pegam algo das pessoas, como se, ao nomear as coisas, a gente adornasse as palavras de si, porque elas são inteligentíssimas, as palavras, e nunca param de mudar. Então a senhora entende, dona Olívia? Não quis pegar de desfecho a frouxidão do meu pai, a sede de cana ou a sanha de miserar nossa mãe. Daí principiou essa manha de me alhear da palavra dele, buscar a minha.

Moço era de fato muito moço, ainda tinha ares de menino, apesar de ser o mais alto e o mais pesado da casa. Ele comia com a cabeça muito baixa, quase enterrada no prato, no pequeno cômodo onde os funcionários faziam as refeições. Resfolegava quando eu ia ao seu encontro no jardim com uma jarra de água nos dias mais quentes, bebia até engasgar.  Um dia ele olhou para a minha barriga com muito assombro, acontecido pela revelação de que ela crescia. Eu disse que mais um filho do Fernando fazia morada sobre a minha pele, e esbravejei que não me olhasse com tanto espanto, porque eu já havia mesmo me acostumado com esse negócio de servir de casa para pequenos corpos, estranhava era ficar a sós dentro de mim.

Correu palavra que eu não largava do Moço, que não o deixava trabalhar, e que, certo dia, depois de beber a água de uma jarra em um único fôlego, ele havia me dirigido olhos assombrados, do próprio jeito que os empregados não devem – por decreto mudo, autenticado por ninguém e reconhecido por todos – olhar os patrões. Fez-se conversa sussurrada nos cômodos da casa, e não tardou até que os outros funcionários acusassem Moço de passar tempo demasiado comigo, de me olhar direto no rosto, esquecido do seu lugar devido, esquecido que era ele quem afundava as mãos em esterco quente e tratava das bichezas da terra com pertencimento, animal que era. Diziam também que eu decerto passava as tardes fora da casa, a tomar sol no cocuruto desavisado, ajoelhada entre roseirais, porque tinha sanha de meter com Moço.

Dona Olívia só dispensou o juízo porque curte mágoa do seu Fernando. A coitada emprenhou quatro vezes em quatro anos, minha nossa senhora da barriga.

Concordo, se seu Fernando tivesse guardado a jeba, todo cavalheiroso, e a deixado descansar entre uma parição e a outra talvez dona Olívia não estivesse assim descompensada, a perseguir o menino das flores.

Ela está é doida de vontade de provocar canseira maior no patrão, isso sim.

Justo, foi ele quem a pôs cansada primeiro.

Bestagem de vocês pensar que seu Fernando não guardou a jeba só por vontade de meter. Ele quer é fazer muitos filhos na patroa passear com eles nos palanques e na televisão, todos sorrisudos e muito bonitos, ganhar votos de tanto acenar para a platéia maior.

Deitados embaixo do pé de amoras, eu perguntava a Moço sobre os mergulhos mais fundos, inquiria quais das suas vontades eram caducas e quais sabiam de si, falava muito sobre essa coisa de querer o Sem Nome, da fome-goteira ampliada no estômago, dos meus filhos, do silêncio, também. Numa dessas, ele me contou que a coisa que ele menos gostava no mundo era fazer comida para os irmãos, porque sempre se queimava, desregulava os temperos e se punha frustrado, exigia do arroz e da farinha uma qualidade de terra, para modelar nos dedos.

A sua mãe tem muitos filhos? Perguntei, num início de choro, descrente que haviam mulheres a parir tanto quanto eu. Ele riu da minha bobice e contou que na terra dele era comum isso de espirrar criança, que os miúdos estavam por todo lado, mas escasseavam das vistas à medida que ele traçava aproximação de ruas como a nossa, com bonitas casas e canteiros verdejantes, em tudo diferentes da dele. Eu sou a única aqui a ter parido mais de dois, segredei, com medo que ele me achasse patetinha por desconhecer lugares como a terra dele, terra de Olívias.

 

 

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Faça parte dessa luta agora

Tudo que AzMina faz é gratuito e acessível para mulheres e meninas que precisam do jornalismo que luta pelos nossos direitos. Se você leu ou assistiu essa reportagem hoje, é porque nossa equipe trabalhou por semanas para produzir um conteúdo que você não vai encontrar em nenhum outro veículo, como a gente faz. Para continuar, AzMina precisa da sua doação.   

APOIE HOJE