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10 de março de 2017

Nascem Flores no Asfalto Capítulo 9: Olhos de água-viva

Nessa distopia, reproduzir deixou de ser escolha. Acompanhe toda sexta a luta de quatro mulheres que resistem a que seus corpos sejam reduzidos a ferramentas.

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[fusion_text]Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Nascem Flores no Asfalto”, de Mariana Lozzi. Leia os outros capítulos aqui.

Ilustração de Larissa Ribeiro

Mamãe perdia a voz ao me ver emporcalhada. Quando eu ia ter com os filhos dos vizinhos e voltava para casa coberta de terra ela se punha horrorizada. Faltava ânimo para ter comigo e me aplicar safanão corretivo, então instruía Tia Tetê de fazê-lo toda vez que me visse por aí a zanzar despertencida de casa e adornada de barro. Olívia nasceu com juízo curto, é formosa só no rosto, porque a alma é de soldado bárbaro, só eu sei o que essa menina me apronta – ela dizia, enquanto tirava os cigarros do maço e os enfileirava diante de si, no beiral da janela. Quando a luz batia no rosto de mamãe, era sempre alvorada.

Ela se empanzinava de amores por mim quando me encontrava sentada no chão, a brincar com as bonecas. Juntas, escorreríamos pentes mínimos pelos cabelos de náilon, inventávamos ocasiões para tirar as bonecas das casas imaginárias em que se enclausuravam tão cedo nos cansávamos de ter com elas e escolhíamos as roupas que mais as trariam mais prumo. Tão elegantes – mamãe suspirava, quando havíamos acabado a arrumação e enfileirávamos as barbies diante de nós. Ela dizia que dava gosto me ver sentada no chão com as costas eretas e as pernas longas entrelaçadas, a ninar bonecas, ensiná-las a melhor etiqueta ou emprestá-las um pouco da nossa vaidade, da nossa beleza.

Ligar a televisão para encontrar mamãe do outro lado da tela era o mergulho mais custoso de todos. Ela sentava ao meu lado toda encurvada, reduzia ao máximo a distância entre o rosto dela e o da sua mimese, como se quisesse entrar na TV para ter consigo, corrigir a curvatura do sorriso, virar um pouco o rosto para mostrar o ângulo melhor, guardar atrás da orelha os fios de cabelo que escapuliram do penteado durante as cenas de guloso amor. Ela chorava muito quando assistíamos novela.

Toda vez que mamãe anunciava que havia conseguido um novo papel na televisão um medo branco e empelotado queimava meus interiores, me maltratava muito. Eu bem sabia que a alegria de mamãe – coisa mais ruidosa, mais lantejoula do mundo – se liquefazia nos olhos em questão de instantes. Para a dor descarrilar nos trilhos do peito era fácil, bastava que ela mirasse nas revistas fotos que haviam tirado dela desavisada, que passasse tempo demais com o próprio reflexo no espelho ou que se reunisse com as amigas.

De frente umas para as outras, ela e as amigas se abraçavam ligeiro e desembestavam a anunciar viagens para os recônditos mais exóticos da terra, presentes extravagantes de namorados, diziam-se muito felizes, afortunadas para toda a vida. Debaixo da mesa era possível ver as mãos de mamãe, que torciam a seda do vestido em um gesto esgotado, as unhas longas prensadas nas palmas com gana de romper as fibras, cavava até achar umidade. Os dedos fremiam sutis de tanta aflição, de tanto cansaço.  No rosto, porém, um sorriso largo se espalhava como que por decreto. Ela ria muito, também se dizia afortunada para toda a vida, posava para as fotos e beijava as visitas no rosto, dizia que muito as comprazia tê-las assim perto, que dividissem bebidas fluorescentes em jarras.

Porca gorda desengonçada, pústula roxa, buraco fétido ampliado, engolidor de gentes, nojeira embatumada, erro, erro, eu acuso mil vezes erro de um Deus criança, Deus cego, Deus hiena, Deus predador de mim – ela gritou, enquanto esmurrava o espelho e a pele das mãos e dos braços era fatiada pelo vidro. Eu berrei o berro mais fundo de que era capaz e os empregados entraram no quarto em trote alucinado. Enquanto lutavam para afastar mamãe do próprio reflexo no espelho e enrolar a pele lambrecada em vermelho nos lençóis da cama, a babá me tomou nos braços e pediu que eu fechasse os olhos. No escuro, espreitei o fundo de um poço seco do qual escadas em caracol ascendiam até os meus pés, trançadas nas mais finas vértebras, ampliadas e reduzidas na bocarra escancarada do nada. Imaginava anjos a escalar as escadas com os cabelos em chamas só para ter comigo, para me dizer que agora eu também era pertencida do abismo, que aquele era o meu lar, a minha palavra, meu segredo e vocação primeira.

No jornal da noite noticiaram que mamãe foi vítima de acidente de carro e que por isso se ausentaria da novela. Apesar dos ferimentos nas mãos e nos braços, os médicos da atriz revelaram que ela está estabilizada e que o quadro clínico indica melhora – o âncora anunciou, enquanto rodava um vídeo de mamãe criança, a chorar para as câmeras com olhos muito sentidos. Ao vê-la tão miúda quanto eu e mais magoada que a mais magoada das crianças, ocorreu-me que minha mãe só chorava porque sabia – do jeito incrível como as crianças às vezes sabem das coisas – que perigava cair e se machucar vezes seguidas, porque ela existia à semelhança das romãs, perfumada de sina, de carne macia feita para ir de encontro ao chão, matéria molosa de pouca fibra, muito sangue, perfeita para desfiar entre os dentes – da frente.

Tia Tetê disse que quebrantar espelhos nos nós das mãos foi a maneira que mamãe encontrou de dizer ao mundo que estava triste. Por que não disse apenas que estava triste, em vez de explodir os espelhos todos da casa – eu perguntei, com o olhar prensado nas minhas bonecas, especialmente solenes naquela tarde. Porque às vezes as pessoas tristes ficam acabrunhadas. Eu não sabia o que era uma pessoa acabrunhada, então imaginei alguém com as mãos em volta da garganta, como que para acusar um resfriado tão forte, mas tão forte que fez secar toda a voz.

Depois que a afastaram das telas, mamãe passou a assistir televisão mais sossegada, sem o tronco projetado para frente, à espera da sua mimese, que a surpreenderia com os cabelos em desalinho ou a maquiagem falha. Com os braços envoltos em ataduras até os cotovelos, ela não podia mais pentear os cabelos das bonecas comigo, mas instruía que eu as cuidasse com o mesmo tino com que a babá me arrumava todas as manhãs, quando pedia que eu levantasse os braços para me envolver em vestidos de bilros e trançar meus cabelos. Eu tinha a sua idade quando fiz TV pela primeira vez, minha filha, e se já soubesse das coisas que te segredo agora não teriam me pego desprevenida uma só vez, não teriam se fartado de rir da minha bobice, feito graça da minha falta de prumo. Também não teria me sozinhado tanto quando teu pai anunciou não queria saber mais da gente, nem maltratado a garganta com o grito de saudade, que é dos mais ardidos e deixa marcas de fumaça. Teria olhado nos olhos daqueles que me acusavam de não ser mais tão linda quanto a toda linda que fui. Mas fique sabendo: toda braveza não me impediria de nutrir devido medo do mundo. O mundo é um cachorro louco, ele uiva alucinado para o sol e lambe uma ferida escura, vai morder quem se aproxime, tem olhos amarelos e dentes muito brancos. Tão brancos, os dentes dos loucos.

Já nos primeiros anos de escola percebi que se referiam à mamãe como ‘a toda linda’. Ela é filha da toda linda, sabia? Sussurravam uns aos outros, no claustro das manhãs mais longas. Todos queriam amizade comigo, sentavam-se ao meu lado e diziam que eu tinha os olhos de mamãe, que eram luminosos e espertos com águas vivas, criatura das mais mágicas. Convidavam-me para festas de aniversários todos os finais de semana e me contavam os segredos uns dos outros na esperança que eu os chamasse à nossa casa, onde comeriam quitutes afrancesados e, quando menos esperassem, dariam de cara com a toda linda de quem os pais não se fartavam de falar, certamente mais linda do que a diziam linda. Nenhum deles entrou no elevador espelhado comigo e subiu até o apartamento onde morávamos, porém. O corpo das tardes eu desvelei sozinha. De bruços, no chão do quarto, despia e tornava a vestir as bonecas vezes seguidas. Queria-as impecáveis, prontas para os divertimentos do adiante, exigia delas uma beleza correta – nem excessiva, nem desafiadora – correta.

Naquela época, a batalha que minha mãe travava consigo havia evoluído na crueza. Toda vez que mirava um espelho, quedava bestializada. Chorava dias a fio, engalfinhava-se com os lençóis de linho em uma luta entre anjos e feras, anunciava sua morte em vida, engasgava-se com a própria língua. Depois que tiramos os espelhos da casa, demos fim às bandejas de alumínio nas quais serviam o café da manhã e escondemos as tampas das panelas, ela mergulhou em um transe plácido – nenhuma rusga acima d’água, nenhum torvelinho abaixo dos corpos. As águas-vivas dormiam, enfim.

Divorciada da própria imagem, mamãe decidiu que, do mesmo modo como ela não via a si, os outros também não deveriam vê-la. Nenhuma visita era permitida na casa, dizia que lá deveríamos ficar só eu, ela e os ajudantes, e instruiu que se alguém se aproximasse demasiado da porta eles deveriam mandar o intruso alocar objetos impossivelmente grandes dentro do fétido buraco.

Alimentava-se somente de lichias e pequenas maçãs, a cozinheira espalhava palavra que aquela era a dieta mais longa de que já tiveram notícia. Ela esmiuçava a carne translúcida das frutas antes de bicá-las com sofreguidão, punha-se lenta para mastigar miudezas e, mal havia começado a comer, anunciava que havia se posto satisfeita e não suportaria desferir mais uma garfada que fosse. Quando segurava suas mãos punha-me horrorizada, não entendia como era possível que em dias de calor descompensado a pele dela estivesse mais fria que os talheres nas gavetas e que a água da bica. Vai ver ela é mesmo como as águas-vivas, e trava as maiores guerras, as maiores festas, no umbigo do mar, lá, no gelado dolorido, lá, no mais fundo – pensei.

Estou enorme, Olívia, não podem me ver assim, você sabe como são malvados, como se divertem com obscenidades, como já nos fizeram penar para desviar das bocarras das lentes que apontavam para os nossos culotes. Eles sempre estão lá, a postos, basta nos descuidarmos, basta esquecermos que o caminhar das gentes se dá em passarela de pregos envenenados. Eu preciso enxugar, capar a pele dos braços gorditos, da barriga, ó, meu pai, veja a minha barriga, Olívia, o que foi feito dela. Pouco importa, vou jogar tudo fora como fiz com as bandejas de alumínio, as banhas vão vazar do meu corpo e ir direto para as lixeiras de centros cirúrgicos. Digo assim, em alto e bom tom: no meu corpo não! Aqui não admito esse disparate das formas, escute o que te segredo, vou fazer secar a goteira maldita que Deus colocou sobre as nossas cabeças, vamos ficar bem, meu amor, tudo não passa de um sonho longo, demasiado longo.

Vai é ver, sua bestinha, como vou voltar a caber nas roupas mais lindas, retomar a silhueta que você me tirou quando inventou de habitar a minha pele. Então voltarei aos palcos, naturalmente, fácil me arranjar naquele meio, poucas ligações e tudo feito, estréia com mil assentos, pouco importa o texto, conheço todos, a memória sempre foi prodigiosa. E se eu dissesse que já fui um verdugo em uma peça de teatro da escola e me aplaudiram de pé até cansarem os braços, os pais e as crianças? Amaram-me muito. Novela nunca mais, aquilo é um antro de descompensados, não gostam do áspero em mim, rejeitam a planta que sou – menos seiva que espinho, sina de erva daninha. Cresço onde não fui requisitada. Mulheres como nós são tidas pragas, tentam nos expurgar com venenos e machadadas, querem extirpar nossas raízes à força, mas a sina da espécie é sobreviver. Cá estamos.

Bebia saquê com gengibre tardes adentro e ao doce do perfume que borrifava no pescoço se acresceu o do suor. Os ossos dos quadris projetavam quinas sobre a camisola de cetim, era possível ter conhecimento dos caminhos todos que percorriam as veias e os tendões só de mirar-lhe a pele. Acabrunhada. Com as mãos ao redor da garganta, procurei minha voz. Não a encontrei.

Não a encontrávamos.

Hein?

Era simplesmente impossível encontrá-la. Por que mudaram minha esposa de quarto sem nos informar?Eu e as crianças ficamos a procurá-la como uns coitados.

Seu Fernando, por favor, não se aborreça, a sua esposa foi transferida para essa ala porque apresentou melhoras. O médico já vai ter com o senhor e explicar os pormenores, só um momento.

Quando tiravam as ataduras dos meus pés, um cheiro adocicado subia, e eu tinha a impressão de estar embaixo de uma árvore altíssima, de onde mangas e caquis de cascas muito moles se desprendiam dos galhos e, na queda, feriam a carne. Carne doce. As enfermeiras evitavam o meu olhar quando removiam os curativos, não queriam que eu fizesse a pergunta. Como estou?

Melhorou. Sua esposa apresentou melhora desde a última semana de tratamento, seu Fernando. Pode ver que até a face corou, parou de rejeitar as refeições e, manhã dessas, foi pega assobiando. Acredita nisso? O quadro de infecção regrediu nos contrastes. É verdade, o organismo dela tardou a reagir, mas deu resposta a tempo. Estamos otimistas.

Quando Olívia poderá voltar para casa? As crianças sentem muito a falta dela, o mais novo chora pelo peito horas a fio toda noite, deu de implicar com a mamadeira, o glutão.

Perfeitamente. Imagino que devem ter ficado muito estremecidas, as crianças. Antes de liberar Olívia, porém, quero ter certeza que o incidente não se repetirá.

Que incidente? Que nenhuma louca vai voltar a quebrar as janelas da escola dos meus filhos às vassouradas? Que Olívia não tornará a cortar os pés em vidro?

Seu Fernando, já tivemos essa conversa. Bem sabe que não é a esse acidente que me refiro. Sua esposa chegou na emergência com os pés metidos dentro dos sapatos, os dedos escuros, prestes a gangrenar. Ela manteve o ferimento em segredo dois dias e três noites. Não pediu ajuda, apenas calçou as botas e seguiu com a ordem do dia, como se os cortes não passassem de farpas mínimas debaixo das unhas, coisa para poucos suspiros. A dor, seu Fernando, a dor…

Olívia não sentia dor.

Como sabe?

É minha esposa, eu a conheço.

Mesmo assim estou convencido que Olívia precisa de acompanhamento especializado, que ela deve se consultar com os doutores d’alma. Não se lembra das asperezas do último parto, seu Fernando, da melancolia, dos poemas? É perigoso escrever poemas, o senhor bem sabe o que dizem sobre os poetas.

Largue de bestagem, Olívia está bem, quem precisa de doutores d’alma é a doida varrida, a da vassoura.

E o senhor sabe o que foi feito dela?

Dizem que vai pegar a cadeira.

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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