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13 de janeiro de 2017

Nascem Flores no Asfalto – Capítulo 2: O Dígito

Nessa distopia, reproduzir deixou de ser escolha. Acompanhe toda sexta a luta de quatro mulheres que resistem a que seus corpos sejam reduzidos a ferramentas.

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Toda sexta-feira a Revista AzMina publica um capítulo do romance de folhetim “Nascem Flores no Asfalto”, de Mariana Lozzi. Leia os próximos capítulos aqui.

As cartas se acumulavam no capacho, gordas de tanto engolir imperativos. Vovó as recolhia e deixava sobre minha cama os envelopes já abertos, leitura anunciada, facilitada, em temperatura amena, pronta para ir de encontro aos olhos. Há anos meus dedos se puseram hesitantes demais para romper lacres, para desdobrar papéis, para franzir a tez na tentativa de fazer sentido das palavras. Eu rondava as cartas em devaneio acabrunhado e as confiava à gaveta da escrivaninha. Dona Cléia, conhecedora do meu cansaço, içava-as do esconderijo e tornava a repousá-las sobre meu colchão, sabida como só ela que assim curtia com a minha teimosia. Ignorar aquelas palavras equivalia a lembrá-las e esquecer o resto.

Lis! – chamou. Lis, eles começaram a cobrar o dígito! A voz saiu da garganta como pio de pássaro de asas doentes, ilhado em árvore sem folhas. Estava aflita, a dona Cléia, acariciava os braços como se o sopro morno que vazava da janela se transformasse em geada assim que tocava sua pele. Olhava para os lados em desconforto pétreo, à espera de bicho maior que nos tomasse de refeição. Esperava. Fui até o quarto e segurei seus ombros magros, disse que não se preocupasse, porque voltaria a fazer pão, meus punhos sovariam a massa em tal frenesi que o dígito se tornaria pequeno, uma despesa a mais, só isso, por nós nem seria sentida.

Basta aprumar os ombros e tudo fica bem, disse a ela. Deixe de ser patetinha e preste bem atenção nisso que te segredo, vó. Vê a luz do fim do dia, como cai sobre os azulejos da cozinha e os deixa nobres, com se do simples se fizesse o raro? Como a mesma luz cobre os móveis – até os mais velhos, aqueles do tempo do vô – com uma demão de tinta lúcida? Vê as almofadas do sofá, como são boas para repousar as costas até cair no sono? Vê as janelas dos outros apartamentos, a se irrigarem em luz como dentes de leite despareados? Percebe, dona Cléia, como a noite é uma senhora ocupada? Como tem uma agenda concorrida? E, mesmo assim, antes de nos darmos conta faz manhã por entre as cortinas, como se tudo não passasse de um suspiro, feitiço certo.

Duplicadas, as contas nos convidavam a procurar endereço mais modesto para fazer morada. Os impostos também alcançavam o capacho, multiplicados, o dígito se imiscuiu em cada uma das despesas, menos no plano de saúde de vovó – por ele, nada pagaríamos. Foi cortado. Espalhei os envelopes dentro de cadernos antigos e embaixo dos vasos das plantas, tomava cuidado para não deixar rastro de maus agouros. Dona Cléia era esperta e caso encontrasse as provas de nossa miséria era capaz de adoecer de desgosto. Faria juízo que a hora era própria para o medo e que o lá fora – antes inseguro por ser demasiado velha e não terem lhe cortado a aposentadoria por completo, como fizeram com tantos velhinhos – só evoluía na crueldade. Os prédios se lapidavam em gumes, as quinas ameaçavam abrir profundos cortes, a realidade ganhava imo de foice. Então vovó acordaria em uma manhã de geada e entenderia que tinha como neta uma desertora.

O zunido da geladeira era o único som que indicava que eu estava viva, desperta, de pé, e que minhas mãos moldavam farinha, água e fermento. Justo eu, que sempre gostei do canto desesperado das cigarras, que me emocionava com o som de besouros cascudos a levantar voo no cume da madrugada, que não me incomodava com o coaxar úmido dos sapos, pus-me surda para os pequenos zunidos. Na minha cabeça desfilavam os acontecimentos dos últimos dias, as cartas eram revisitadas por dedos vacilantes e as letras vermelhas se desenhavam na cortina dos olhos, tomavam recônditos da consciência, punham-se cada vez mais gulosas.

Sovei o pão até que as mãos se pusessem vermelhas e inchadas. Fendas pequenas se abriam nos dedos quentes, como se tivessem sido forjadas por farpas, calos antigos se renovavam e, na agonia do pulso, o silêncio morava. Fui capaz de sorrir. Pincelava gemas de ovos em cima dos pães, respeitava o tempo daqueles que ainda não haviam crescido, confiava ao forno os maiores, cravejados de nozes, com pequenas pedras de sal escondidas nos interiores, a derreter na danação das chamas. O cheiro da casa era absurdo, a noite encontrou fim prematuro e eu – insone, com o pijama polvilhado de farinha, os cabelos finos em desalinho, o corpo molhado no carnaval dos braços – decidi cruzar a porta em definitivo. Teria com eles, ah sim, com todos eles. Uma vez que estivesse no prédio bem iluminado, diante dos guichês cuspidores de senhas, sacaria da bolsa os envelopes. Com gestos grandiloquentes lançaria as cartas aos ares e faria chover um temporal de ameaças, dilúvio de letras miúdas, vermelhuscas. Havia decidido: picotaria os papéis com as mãos em carne viva, e então gritaria uma risada.

A demência da ­cena me deixou ofegante, o corpo vacilava, a vertigem me envolvia na queda lenta, cobria-me de desmaios doces, pequeninos. Na minha mente, argumentava com os homens fardados que viriam ao meu encontro e me arrastariam até a porta do prédio, de onde me lançariam como uma boneca de trapos, peso mínimo. Diria que não queria, que não iria, deixaria rolarem lágrimas, lutaria sem chance de soltura. A multidão, profundamente emocionada, tentaria intervir a meu favor, gritaria ensandecida, picotaria os próprios envelopes, engoli-los-ia para vomitá-los no carpete recém-aspirado, chamaria meu nome em vão, porque eu já estaria fora do prédio, rendida, sob as vistas dos homens fardados, com os punhos fechados, em fogo. Finalmente eu entoaria o lamento de gigante com que sonhei na infância, mas sempre me escapou, primeiro por ser demasiado pequena, depois por ter me descoberto mulher.

Nos trilhos febris da imaginação eu pedia misericórdia, acusava mesquinharia, barganhava minha sobrevivência. Na cozinha de vovó, debaixo da nuvem de cabelos farináceos, chorei de alívio. Sairia do apartamento, sim, e quando chegasse a hora saberia exatamente o que dizer, não faltariam palavras, o desvario da língua encontraria o da mente e então eu falaria da vergonha, da vergonha, sim, ela que me despertava pelas manhãs e me desejava boa noite com um beijo pérfido. Eles entenderiam, o perdão viria certeiro, estancariam o fluxo de cartas endereçadas a mim e eu caberia de novo no meu corpo.


Como assim saiu de casa desse jeito? Ficou louca, Lis? Perdeu de vez? Você sabe o que eles fazem se te encontram na rua, sua besta. Ainda foi de carro, só faltava carimbar ‘30’ na testa, já que não basta sua idade estar nos documentos, na placa do carro e em tudo que é pedaço de papel endereçado ao teu nome. Faça-me o favor, o que é essa meleca na sua roupa? Ô Lis, cê tá de pijama? Ai meu pai, endoidou, só pode.

Ana me olhava de cima, a cabeça diminuída sobre os seios fartos, a camisa de seda manchada de leite. A marquise das sobrancelhas sustentavam os olhos como tendas noturnas, ela balançava o tronco nervosamente, o leite escorria lento. O lastro de umidade se espalhava pelo corpo nu da tarde. Um lamento cortou o ar, vinha em ondas, agudo e rasgado, ardia-me a garganta. Ana marchou passos rápidos em direção ao quarto e me deixou sozinha na sala de cortinas sóbrias, desmaiadas, em contraste com o colorido dos brinquedos espalhados pelo chão. A chaleira gritou, em complô com o primeiro choro e em interferência ao meu delírio. Quatro colheres de pó. A primeira coisa a saber sobre Ana é que ela gostava do café forte. Caso estivesse fraco ela o rejeitaria antes mesmo de consumar o gole, se estivesse doce ela riria furiosa e lançaria maldição sobre os adoçantes.

Ana nasceu com fome. Nunca vi alguém devorar nectarinas tão rápido, aproveitava toda carne em volta do caroço, indiferente ao fio de suco que escorria pelo queixo pronunciado ao encontro da gola da blusa. Acreditavam-na menos menina por ser faminta despudorada, falar alto e subir em cadeiras com as pernas altivas. Uma vez, Ana tirou uma régua do estojo e a quebrou em demonstração de força. Um estalo partiu a tarde e o resto das crianças se viraram para encontrar pedaços de plástico no chão. Vi de perto: um corte fino se abriu na palma de sua mão, trágico como flor que desponta de solo gelado, derramando opacidade sobre o emaranhado de linhas transparentes. Minha amiga acreditava que, para adiantar porvires, bastava olhar para as mãos. Abri-las. O brilho mínimo se encontraria ali, inadiável, a dúvida desabrocharia em certeza. Naquela tarde, porém, ela não se mexeu, não se queixou, apenas observou o sangue se dividir em filetes e tomar os braços finos. Molduras escuras seccionavam a pele em novas geometrias como se Ana fosse, secretamente, feita de vidro.

Não era burra. Com o queixo levantado, podia adivinhar limites e se conter antes de ultrapassá-los, não lhe interessavam repreendas. Assim foi quando, dois meses depois que um envelope com floreios em tinta dourada chegou até minha porta, um idêntico foi ao encontro à sua. Também havia sido aliciada. Feroz, esquadrinhou os próximos anos para que não ultrapassasse a linha. A mesma linha – transparente e cortante, suspensa na altura dos tornozelos – que eu havia ultrapassado. Anunciou que estava grávida como se tivesse assinado feliz acordo com um cliente ou quitado as prestações da mobília nova. Estava contente, integrada ao mundo, feita para atender demandas.

A barriga despontava das camisetas e ela não reduzia a marcha dos pés, curtia rotina inalterada e se gabava de negociar com sucesso uma janela de dois anos antes que outro envelope se interpusesse entre ela e o elevador, em ultimato por vida. Diferente de mim, não a desejavam melhores sortes quando passeava na rua com o umbigo em pipoca, pois as gentes concordaram que sorte maior não caberia ao destino de Ana, afortunada que se pôs. Mesmo assim, cobriam-na de gentilezas e mimos, festejavam-na como se tivesse voltado de missão além mar em cumprimento de tarefa honrosa. De Ana não se apiedavam, dela não se ocupavam. Estava perdoada.

Depois de parir, minha amiga esmaeceu nas cores, pôs-se lenta, morosa. Uma vez a encontrei sentada no chão do banheiro com o bebê seguro contra o peito, melodias desconhecidas vazavam da boca entreaberta, impossível dizer se estava acordada ou se boiava na superfície dos sonhos. A torneira da pia estava aberta, prestes a transbordar. Ana ignorou minhas providências para conter o alagamento e, imóvel, disse: A vida inteira choveu cansaço sobre mim, mas eu amparei as gotas com um toldo, estava protegida. A aguaceira ficou suspensa acima da minha cabeça por muito tempo, estática, acrescida no volume a cada garoa, a cada gota. E eu aqui, seca. Agora o toldo rompeu, Lis, chuvas antigas vieram se vingar do meu descanso, do meu descaso, estou encharcada, não vê?

Os calcanhares felinos que coreografavam os giros do mundo se firmaram no carpete claro do apartamento novo. Os pés, gordos e de veias saltadas, pareciam armazenar água para matar sede vindoura. Eu a visitava toda semana e trazia presentes para o Leozinho, cujos interesses se limitavam a modelar bolas de baba e reclamar apetites e cólicas. Antes mesmo de abrir a porta sabia que a encontraria sozinha, seguramente sozinha, ora em posta em frenesi organizador, em missão doméstico salvatória, ora deitada no sofá com as roupas do dia, os pés escapulindo do cobertor, a respiração lenta a disfarçar o fato que havia acabado de adormecer e que logo estaria de pé, acudindo o filho nas destemperanças.

Lis, faça-me o favor e vá tomar banho. Tem uma toalha em cima do balcão, tire esse grude horrível do cabelo, bisnagas cruas estão dependuradas nas pontas dos cachos, sabia disso? Não acredito que esperou até cobrarem o dígito, estou doida da vida com você e aposto que sua avó está também, sabe que ela morre de medo dessas coisas, a dona Cléia. Até o Leozinho chorou descompensado quando contei a ele… Ah, mas só faltava essa, trate de desarmar a carranca, você sempre foi dramática, juro que se preocupa mais com bobices que com as coisas agudas, do real, como o dígito, minha santa Maria da macumba, o dígito, Lis! Sim, muito bem, contei todos seus podres para o meu filho, desdobrei sua rede de burrices diante dos olhos dele e, francamente, espero que aos seis meses de idade Leozinho não se debruce no parapeito da janela e grite seus problemas rua afora, que não os transforme em uma peça de teatro aos dois anos e que ela não vire um filme ao passo que ele tiver completado cinco anos. Entende como você soa estranha? Larga disso, vai, Lis, ninguém gosta de paranoia, você sabe que isso nos deixa paranoicos.

Ana acendeu um cigarro enquanto puxava os pedaços de massa grudados no meu cabelo, desembaraçava os fios nos anelares. A fala escapulia em ritmo impossível, as palavras atropelavam umas às outras no incêndio da língua. Já aconteceu comigo uma vez, sabe? A polícia me parou por causa de lanterna queimada e viram que eu beirava os trinta, o sistema não acusava nenhum filho. Fiquei doente de medo enquanto me olhavam de cima, achava que não me deixariam ir, que me levariam à delegacia e me segurariam lá até que o problema do filho fosse solucionado, você sabe nas coisas que a gente pensa nessas horas. Mas é para isso mesmo que eles fazem as rondas: metem-nos medo ou metem-nos filhos. Tantas histórias, o mais difícil é que acredito em todas, sempre me atraíram os absurdos, você sabe disso, que são justamente os absurdos que costumam ser verdade. A ignorância é o único Deus em que acredito, o resto todo é questionável. Mas como duvidar dela, que todos os dias se prova real?

Não me meteram filho, mas o medo transbordou pelos olhos, pedi perdão sem conhecer o crime. O polícia mais novo era o que mais me preocupava, tinha nele algo de pegajoso, um nojo branco e espesso, espirrava ruindade pelos olhos. Tinha medo que abrisse a porta do carro e me mandasse sair, que entrasse, parecia disposto a tudo, nem perdia tempo com insultos, só olhava mesmo, aquele lá. Era jovem, recém saído da puberdade, vestido como general, os distintivos alinhados no peito, botas polidas, as unhas também – esse tipo geométrico nutre ódio insano por mulheres de útero vazio, principalmente pelas maduras como nós, só perdoam as parideiras, as pobrezinhas. Vendi o carro.

Ô Lis, por que não vai logo à clínica? Eu tenho a entrada para o pedido de financiamento, é sua, tenho um advogado, é seu, aposto que em algumas semanas te respondem, aposto que aprovam, que dá tudo certo e que as coisas se alinham, se ajeitam. Vai ver é tudo manobra, cobrar o dígito, suspender o plano de saúde da dona Cléia, a humilhação, os polícias, as multas… Querem mesmo é tomar sua concha, te habitar, te expulsar de dentro de ti, coisa muito simples de resolver, não calcula a sede que eles têm dos nossos corpos. Lis, escuta, olha fundo nos olhos da rapariga que vos fala e escuta. Tá escutando? Pois bem: expurga da memória o passado, apaga os resquícios do antes, das coisas que descobrimos, daquelas que nos descobriram, da febre, dos votos, da luta. Não dá pra pensar demais, seguro é obedecer. Faz um filho e te salva.


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* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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