A Revista AzMina está publicando toda quarta-feira conteúdos e reportagens investigativas da série especial sobre o Lobby Antiaborto no Brasil. Esse divã faz parte da série e busca mostrar os impactos humanos dessa frente ampla no país que desinforma e manipula para retroceder nos direitos reprodutivos. A criminalização e o grande estigma sobre aborto afetam drasticamente a vida de meninas, mulheres e pessoas que gestam.
AzMina recebe esses relatos voluntários de pessoas que abortaram nos mais variados contextos e enfrentaram desafios em um país que restringe o acesso à saúde e ao aborto, inclusive nos casos em que a interrupção é prevista em lei (risco de morte materna, anencefalia do feto e gravidez resultante de estupro). Veja a seguir um desses depoimentos inéditos:
“Tudo começou com muitos enjoos, mal-estar, febre, e uma TPM que parecia eterna. Sempre tive problemas de estômago e estava acostumada a passar mal, então uma gravidez parecia inimaginável.
Eu era uma jovem universitária, levando a vida entre os estudos, trabalhos e um lar nada estável, com o costume de sair e conhecer pessoas. Em uma dessas saídas conheci um rapaz, ficamos somente duas vezes – e usamos preservativos, mas o método contraceptivo falhou. Nos primeiros momentos que passei mal, veio uma forte apatia por homens, eles me davam asco e nojo, me senti invadida com uma responsabilidade que cabe só a nós, mulheres (com um útero). O desespero me preencheu e eu me perguntava o porquê disso estar ocorrendo, o que faria, mas tinha uma certeza: não prosseguiria com a gestação, não tinha forças.
Muitos pensamentos e emoções passaram por mim, a dor de viver em um lar com tantos problemas, e tentar dissociá-los de si mesma, olhar todos os traumas causados, todos os sofrimentos sentidos. Pensei: ‘Eu não posso fazer alguém passar pelo que passei, não posso gerar alguém em condições que façam ela sentir toda a dor que eu senti’.
Meu sonho sempre foi, e ainda é, construir uma família, ter filhos e um lar sossegado e estável, mas com 21 anos, os passos ainda estão sendo dados, nada é concreto. Além da dependência financeira, há todo o desenvolvimento psicológico e emocional para tratar os machucados abertos. Pensava que uma mãe infeliz, criaria filhos infelizes. Todos os dias muitas questões passavam por mim: os preços aumentando, a fome, o transporte público ruim, a violência em nosso país, o assédio e a violência que nós mulheres sofremos. Como eu poderia proteger um futuro bebê inofensivo, sendo que ainda estou conquistando meu espaço nessa vida?
Mandam ter o filho, mas não ajudam
Nesse momento o homem virou meu inimigo, as atrocidades, das micro às macros, que passamos constantemente, seja o jeito como somos tratadas, as fofocas que contam da gente, a forma que olham, que criticam, que nos isolam, e nos abandonam, os homens não nos acolhem. Sempre colocadas como um objeto de desejo, de auxílio ou de conveniência. Criticadas se somos mães, se não queremos ser mãe, se somos magras demais, gordas, quietas ou loucas demais.
Crescida sem pai, não colocaria nesse mundo um filho que não teria um pai. Eu seria a mãe que não é amiga do pai? Não compartilhei com o rapaz, pois além de não sermos próximos, ele poderia influenciar minha decisão já tomada.
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Foi um longo processo, conversei comigo, com minhas ancestrais, com Deus, expressava o porquê da minha escolha. Infelizmente, vivemos em uma sociedade que te deixa a margem de tudo, mandam você ter filho, mas não ajudam quando você precisa. Será que eu suportaria gerar e criar um ser sozinha? Com todas as dificuldades financeiras e todas as questões psicológicas?
Percebi como as mulheres são fortes, batalhadoras e como são capazes de enfrentar mares sozinhas, cuidando de suas casas, seus filhos, e ainda tendo que trabalhar, estudar. Ser mãe é um ato de coragem, assim como escolher o aborto, pois ele nos acompanhará por toda a vida também.
Rede de mulheres conhecidas e clandestinas
Em momentos de muita dor percebi que possuía uma rede incrível de mulheres: mãe, avó, amiga e uma conhecida que me amparou no processo. Orei e oro a todas as mulheres vivas e a todas as ancestrais que me guiam, elas foram fundamentais. A energia da geração de vida também pode ser a energia de decidir sobre a morte.
Fui acompanhada por uma rede de mulheres, clandestinas. Comecei escrevendo, fui me despedindo e explicando todos os motivos de minha escolha. Afinal, é estranho pensar que existe um ser dentro de você. Nos dois meses de gestação foram mais de 5 kg engordados, não sei se foi a ansiedade ou o embrião, mas eu comia demais. Sentia muitos enjoos e tinha que tomar remédio todo dia para aguentar a rotina sem vomitar. Escrevia para mim. Parei de sair e socializar – me fechei do mundo, e me concentrei totalmente nesse momento.
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Comprei os remédios online, chegou dois dias depois, fui para um quarto de hotel, e tomei. Contrações, enjoos, cólicas, pressão baixa e muito cansaço: foram 6 horas até ver o embrião no vaso. Me perguntei, sou fria demais? A coragem de ser forte nesse momento, de entender que você não tirou a vida de alguém, mas talvez salvou duas vidas das inconstâncias da sociedade que te cerca e dos problemas que te assombram.
O Estado é contra as escolhas das mulheres, é contra elas decidirem sobre sua própria vida, seus corpos, seus caminhos. É crime e pecado entender que meu corpo, meu lar e meu psicológico não conseguem amparar um novo ser nesse momento, e precisa fazer outras escolhas na vida que não seja ser mãe? Entender que preciso melhorar como pessoa e mulher, estudar e trabalhar, focar em outras coisas em vez de parar 9 meses e depois colocar toda a energia de minha vida na vida de outro? O crime e o pecado que, em outros países e culturas, é a coisa mais normal do mundo.
Medo e pressão social, enquanto precisam de colo
Na rede que me apoiou, percebi que diariamente muitas mulheres realizam esse procedimento no Brasil, tive contato com muitas. E todas enfrentam os julgamentos, o medo, o desconhecido e a pressão social.
Nossas ancestrais sabiam desse poder de escolha. As raizeiras e curandeiras usavam o dom de suas ervas para entender que nem sempre podemos gerar e colocar um ser humano no mundo. Independente de todos os desamparos, me amparei sim na fé em Deus, nos orixás e nos próximos que me apoiaram.
Uma semana depois fui fazer ultrassom. Útero fechado e nada mais. Fiquei surpresa e aliviada. Refleti sobre as que não podem desfrutar desse processo no Brasil da mesma forma que eu pude. Tantas acabam morrendo ou sendo tratadas como as piores pessoas do mundo quando vão ao hospital.
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Só nós sabemos como precisamos de um colo e não de pessoas que questionem e imponham suas opiniões. Mas de pessoas que escute e acolha com bons braços e cuidado.
O pós, afinal, é pra sempre. O luto vivo todos os dias, eu também morri nesse processo, uma morte interna de quem fui e quem agora sou e estou me tornando. Me recolhi, para compreender meu corpo, meus sentimentos e sensações.
“Só não me obrigue a gerar um filho”
Nosso corpo é só nosso, ninguém tem o direito de nos falar o que vestir, como vestir, onde estar, como estar, para onde ir ou o que fazer. Não sou um objeto de desejo e assédio, não sou um banco de óvulos, muito menos um depósito de esperma, não sou isso. Sou um corpo que precisa de atenção, de amor e carinho. Uma mulher que quer ser reconhecida pela sua integridade, pelo seu esforço no trabalho e sua dedicação nos estudos. Pelas músicas que gosta de ouvir e pelos livros que gosta de ler. Pelos caminhos que consegue conquistar sozinha, pelos lugares que consegue conhecer, e pelas conversas que consegue ter.
Me obrigue a ter um trabalho digno, a estudar em uma boa universidade, a poder ir aos médicos. A andar em transportes públicos de qualidade, a andar nas ruas tranquila, seja de noite ou de dia. A conhecer os museus, praias, rios, cachoeiras e parques. A aprender sobre outras culturas, idiomas, a visitar os belos lugares deste Brasil. Só não me obrigue a gerar um filho.
A jornada não finaliza aqui, espero poder aconselhar e ajudar as mulheres que precisam, assim como pude ser acolhida também. Sua escolha é só sua e de mais ninguém, pois no aperto será você com você!”