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19 de dezembro de 2024

Aborto legal de criança e adolescente: qual o papel do Conselho Tutelar?

Em escuta realizada com 19 conselheiros/as, apenas quatro (21%) disseram que informariam sobre o direito ao aborto

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Em novembro participei de uma “visita surpresa” aos Conselhos Tutelares de Recife, Olinda e Goiana, realizada pelo Grupo Curumim, que tinha entre seus objetivos conhecer fluxos e encaminhamentos para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Foi uma ação de incidência, visando contribuir com acesso à informação e alertar a sociedade civil, instituições, conselhos e organismos de Estado, para a defesa dos direitos desta população diante da gravidade dos dados de violência relacionada à infância e juventude. O relatório foi entregue à Presidenta do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) neste dezembro. O órgão está em pleno debate, tendo em vista adotar uma Resolução a respeito do tema.

imagem de uma sala de conselho tutelar, com brinquedos de crianca
Brinquedoteca Conselho Tutelar. Credito: Elizangela Santos

Os Conselhos Tutelares (CTs) foram criados pela lei que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990. São órgãos eleitos pela sociedade e com autonomia para zelar pelo cumprimento do ECA. Um CT tem o dever de ação “em casos de negligência, violência doméstica, maus-tratos, exploração sexual, abandono, situações de risco pessoal ou social, entre outros. Os conselheiros têm a responsabilidade de receber denúncias, avaliar as situações apresentadas e intervir de maneira adequada para proteger os direitos da criança e do adolescente”.

Já o CONANDA foi criado em 1991, pela Lei 8242. Trata-se de um órgão colegiado permanente, de caráter deliberativo e composição paritária (governo e organizações da sociedade civil), que compõe a estrutura básica do Ministério dos Direitos Humanos, sendo o principal órgão do sistema de garantia de direitos deste público.

Em agosto último, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o UNICEF lançaram o Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil 2021-2023, apontando que tivemos, no período, 164.199 vítimas de estupro e estupro de vulnerável entre 0 e 19 anos. “Os números impressionam e dão conta de um cenário de muito risco para crianças e adolescentes no País”, denuncia o documento.

Informação sobre aborto legal

Na escuta que realizamos em 13 Conselhos, foi unânime a referência ao crescimento desses casos. Na voz de um conselheiro: “56% das notificações de violências vêm da escola, pois é na escola que as crianças se sentem mais à vontade para relatar as violências sofridas em casa”. 

Essa é uma realidade que exige intervenção. Embora seja unânime a percepção do problema, na escuta realizada com 19 conselheiros/as, apenas quatro (21%) disseram que informariam sobre o direito ao aborto legal de crianças e adolescentes. Um conselheiro disse: “Informaria, até porque informação é um direito e informar é meu dever”. Mas foi uma minoria pensando assim.

A pergunta era se existia a prática de informar à família, ou responsável, sobre o direito ao aborto legal nas denúncias de abuso sexual.  Além do estupro, estamos lidando com possibilidades de gravidez, o que coloca a questão do risco de morte da criança – tendo, então, duas situações de legalidade do aborto previstas no Código Penal. Nesse cenário, em que cerca de 80% das pessoas entrevistadas não consideraram a escuta como sua atribuição, uma conselheira opinou: “A gente não fala porque o Conselho Tutelar não é o lugar da escuta desses casos de violência sexual contra crianças e adolescentes… não temos propriedade para falar do aborto legal, um tema tabu”.

Para esses casos, sem exceção, o fluxo dos conselhos que visitamos prioriza o poder de polícia. Há, infelizmente, o seguinte entendimento: “As demandas que envolvem o poder judiciário não são de competência dos Conselhos […] se uma pessoa liga para polícia para fazer uma denúncia anônima de violência ou abuso, ou estupro de vulnerável, eles mandam a pessoa procurar o Conselho. Ora, em caso de abuso, não fazemos a escuta, fazemos os trâmites para exame de corpo de delito e para o CREAS, que vai fazer o acompanhamento para a saúde e para aonde for”. Nesse exemplo, o conselheiro entende que o encaminhamento à saúde é dever dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social.

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Influências religiosas nos órgãos

Recife é o único entre os municípios visitados que dispõe de uma Delegacia de Proteção da Criança e Adolescente (DPCA), referida por uma conselheira: “… é onde existe uma equipe multidisciplinar capacitada para a escuta da vítima”. Entretanto, sua fala conclui: “… o problema é que os casos não andam. Tem casos de violência e abuso que estão na DPCA faz 5 anos e não resolvem”. Sobre a DPCA, outro conselheiro lapida a avaliação:“… a DPCA não dá a atenção devida porque a delegada é pastora, o policial é adventista, eles não veem pelo lado do direito, mas pelo fundamentalismo e machismo deles. Muitas pessoas das redes, CRAS e CREAS, e até da rede de saúde não atendem, a partir do seu fundamentalismo”.

Na escuta foi denunciado que a política partidária e o fundamentalismo religioso têm influenciado a eleição e a atuação de conselheiros e conselheiras. Por outro lado, é sabido que o Código Penal e as normas do SUS não garantem a instituição de um modelo de assistência pautado na humanização do cuidado ao abortamento no Brasil.

Diante dessa realidade, uma Resolução do CONANDA, que oriente normas e defina o encaminhamento dos casos de estupro, violência e exploração sexual de crianças e adolescentes. Um documento que expresse a responsabilidade e o dever de todos os órgãos de defesa, se faz extremamente necessário para recomendar e garantir o acolhimento e o cuidado em saúde. Isso precisa ser feito com o devido repasse de informação, garantindo inclusive o acesso ao aborto legal. Uma Resolução que favoreça a condição para reduzir a revitimização de crianças e adolescentes nos serviços, bem como mitigar os efeitos das violências em suas vidas.

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Este artigo foi escrito pela autora a pedido da Campanha Nem Presa Nem Morta

* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

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