por Maria Giulia Pinheiro*
A primeira vez que vi Karina Buhr foi em 2012 na praça Roosevelt, chamada na época de praça Rosa. Já tinha ouvido os discos Eu menti pra você e Longe de onde exaustivamente. Mas ela, não, nunca tinha visto. Era um festival chamado Mais Amor em SP (na época, havia amor em SP e a gente nem sabia) e, pelo o que parecia, ninguém estava ganhando pra isso — ninguém pagava também.
A primeira vez que vi Karina Buhr foi em cima de um andaime que fazia meu medo de altura escorrer pelas pernas. Ela lá no alto, claro, e eu lá embaixo olhando praquela figura. Trepada, um figurino avesso ao bom mocismo e às regras clássicas da estética ousada-mas-bem-simétrica da maioria dos cantores descolados que a gente vê por aí.
A primeira vez que vi Karina Buhr, aquela imagem dela, aquele momento, me ensinou mais sobre política do que alguns anos no movimento estudantil. Aquilo foi a síntese estética de ocupação urbana, vivência do próprio corpo e liberdade em movimento.
A liberdade da Karina é selvagem e viva.
Logo em seguida, veio o disco Selvática. Eu, que pesquiso há anos mitologias a partir da ótica feminista, nunca tinha pensado por esse lado dela. A Karina me fez crescer ao ouvi-la. Tenho uma gratidão pela Karina como aquela que a gente sente pelas irmãs mais velhas que nos mostram as ideias que os pais proíbem. Aqueles primeiros palavrões da infância são as visões sobre o feminino que a Karina traz nas músicas.
“Mulher, tua apatia te mata
Não queira de graça
O que nem você dá pra você, mulher”
Recentemente participei de uma mesa sobre feminismo e mercado de trabalho na Santa Casa de São Paulo. Falamos sobre muitas coisas e, num dado momento, sobre minha pesquisa atual: novas narrativas criadas pela arte feminista. Uma estudante feminista de medicina (multiplicai-vos!) veio conversar comigo no final, dizendo que viu o show da Karina no Sesc Bom Retiro. A estudante, com os olhos enormes e iluminados, contou que a Karina havia chutado o microfone de um músico que a atravessava. Aquilo, para a futura médica feminista, havia aumentado a sua experiência de luta.
Experiência de luta. É sobre isto este relato. A Karina é uma compositora maravilhosa. As músicas dela são revolucionárias. A Karina é uma poeta avessa aos bons mocismos na literatura. Seu livro Desperdiçando rima (Editora Rocco, 2015) é único. A Karina é uma cantora incrível. Mas, como se não fosse o bastante, a Karina é uma existência forte. É nas ações dela, nas performances, no jeito como ela lida com as situações concretas da arte e da vida que mora o pulso dela, que transborda pra arte. Em tempos de discursos tão facilmente reprodutíveis, é lindo ver uma artista que é o que diz. Que age o que diz.
Acho careta pensar que a arte se restringe ao produto. Ainda mais falando de Karina Buhr, que é tudo: artista visual, performer, poeta, cantora, compositora etc etc etc. A poesia é a rua.
Foi em 2011 que li pela primeira vez o artigo “Feminizar é preciso: por uma cultura filógina”, escrito pela intelectual anarquista, professora doutora Margareth Rago — outra mulher que merecia um texto inteiro dedicado a ela. Ele começa com a epígrafe de Frances Wright, feminista inglesa:
“Ouso dizer que às vezes você se espanta com minha maneira independente de andar pelo mundo como se a natureza me tivesse feito de seu sexo, e não do da pobre Eva. Acredite em mim, querido amigo, a mente não tem sexo, a não ser aquele que o hábito e a educação lhe dão.”
Essa leitura foi essencial para o meu feminismo desde então. “Meu feminismo”? Para evitar impressões neoliberais, digo “meu feminismo” da forma mais individualista/anárquica possível. Digo “meu feminismo” não como uma linha de pensamento pros outros, mas como uma essência de filosofia ativa (ética?) que norteia as minhas ações. Foi este texto também um dos dispositivos para a criação do ZONA Lê Mulheres, um sarau que acontece mensalmente por SP em que só são lidos textos escritos por mulheres. O artigo diz, recortando e resumindo muito, que agir com amor entre as mulheres, num mundo tão misógino, é um ato de recusa a este sistema.
Este texto que aqui escrevo, a convite da amiga e escritora Bruna Escaleira para a coluna, é uma declaração pública de amor a uma trajetória de luta e arte. É um agradecimento e um cheiro a uma artista que abre campos de visão para outras. Que liberta as outras na medida em que se permite a liberdade – não sem muita batalha, imagino.
A poesia traça mais do que linhas. Traça perspectivas.
O legado da Karina é a abertura da palavra-ação selvagens.
Para todas nós:
“Selváticas, elas não necessitam seu elogio
Ela transgride sua orientação
Refeito o começo bíblico não ferirás nenhum corpo por ser
Feminino com faca, ou murro, ou graveto
Eu te prometo
Sedarás o mal, interceptarás no meio do caminho o espeto
Super heróis de duas vítimas estancadas
Agora és delas a espada e não o algoz.
Selvática, ela come a selva de fora
Ela vem da selva de dentro!
Selvática, ela pare a própria hora
Ela vale em pensamento!
E no final ideal não terás domínio sobre mulher alguma!
No final ideal não terás domínio sobre mulher alguma!”
*Maria Giulia Pinheiro é autora dos livros Da Poeta ao Inevitável, Editora Patuá (2013), Alteridade, Selo do Burro (2016), e Avessamento (2017), Editora Urutau. Artista e ativista feminista, é dramaturga, diretora, atriz e performer. Criadora e organizadora do sarau ZONA Lê Mulheres e uma das fundadoras do coletivo Companhia e Fúria. Formou-se jornalista pela Fundação Cásper Líbero e atriz pelo Teatro Escola Célia Helena, especializou-se em Roteiro para TV na Academia Internacional de Cinema e em “Arte na Educação: teoria e prática” – ECA/USP.
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