A série britânica Fleabag virou febre pop rapidamente e faturou quatro dos 11 prêmios Emmy aos quais foi indicada, inclusive o grande prêmio de Melhor Série de Comédia.
Com duas temporadas (a segunda estreou em 16 de setembro), a série está disponível para assinantes da Amazon Prime e traz a protagonista Fleabag (interpretada por Phoebe Waller-Bridge, que também roteirizou e dirigiu a série), uma moça comum de 30 e tantos anos que consegue escapar a quase todos os arquétipos de personagem feminina na TV.
Ela não é exatamente agradável, mas tem boas intenções (que muitas vezes dão errado) e uma relação complexa e sensível com todos os outros personagens da série, inclusive sua melhor amiga falecida que só conhecemos por flashbacks.
A série surpreendeu por inovar na arte do roteiro para TV – a protagonista inicia a primeira e longa cena do primeiro episódio quebrando a quarta parede (barreira imaginária que separa os personagens do público) e se dirige diretamente aos espectadores, em um monólogo que começa em um encontro e só termina no dia seguinte, quando ela acorda na cama do rapaz.
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Ao mesmo tempo que essa intimidade nos é oferecida de primeira, nós nunca sabemos seu verdadeiro nome. Parte disso está muito atrelado à personalidade de Fleabag, que constantemente causa estranhamento com honestidade bruta e humor inapropriado para resguardar seus lados mais vulneráveis em um canto seguro.
Quanto mais situações absurdas ela abre pro mundo, mais a salvo ela está de criar relações aprofundadas e doloridas. Da mesma maneira, quanto antes ela abre o jogo conosco sobre o absurdo da vida comum – com o qual é fácil se identificar e que, portanto, fazem de Fleabag apenas mais uma na multidão – mais fácil fica se esconder atrás de um pseudônimo que faz de suas confissões anedotas anônimas.
Na segunda temporada, Fleabag estabelece uma relação com um padre, que também não tem um nome na série, mas na internet recebeu a alcunha de “O Padre Gostoso”. Essa relação é ao mesmo tempo um alívio cômico e uma constante tensão sexual e emocional que a gente sente no nosso próprio estômago. Assim como a protagonista, O Padre Gostoso é um personagem extremamente complexo.
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Ele está sempre andando no limiar do que é mais mundano (dores que a gente afoga em álcool, fazer compras, comer bem e assistir TV) ao que é sagrado e divino: sua própria profissão, a relação que ele tem com o Deus católico e sua religião, que ele vê como fonte de uma energia de comunidade, reflexão e filosofia que ele cria com as pessoas que frequentam sua igreja.
Sua relação com Deus e o catolicismo é genuína, mas o sofrimento diário constante do ser humano e os problemas internos políticos da Igreja Católica parecem fazê-lo quase desistir muitas e muitas vezes.
É nesse conflito que o padre, assim como Fleabag, tomam decisões às vezes egoístas e mal pensadas. Como todos nós.
É nessa teia sutil de sentimentos muito relacionáveis que a série vai criando sua atmosfera, que faz a gente rir de nervoso e sentar na beira da cadeira de incômodo, mas também nos faz sorrir com as tentativas reais de conexão que essas pessoas estão tentando fazer, por mais que errem.
O Padre Gostoso é tipo o Padre Amaro de Eça de Queiroz, só que ao contrário: ele não é um símbolo de uma instituição falida e corrupta que se expressa por meio de um ato sexual criminoso – O Padre Gostoso é a ausência de símbolos, uma pessoa comum, conflitante e confusa que repensa a escolha da sua carreira todo dia quando acorda como qualquer um, e ainda assim ama o que faz como muitos de nós.
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Que ele seja padre só colabora para a piada sexualizada de um amor proibido com um cara gostoso que é celibato, e para o conflito de nossa protagonista que se vê apaixonada por um homem ao mesmo tempo completamente proibido e absurdamente normal.
E além de tudo gostoso.
É tipo aquela citação do Brás Cubas: por que gostoso se padre? Por que padre se gostoso?
A relação de Fleabag e O Padre Gostoso só se intensifica quando descobrimos que para além da 4ª parede da protagonista existe uma 5ª parede: o padre consegue perceber quando Fleabag conversa com os espectadores, o que é maravilhoso, romântico, engraçado e levemente bizarro e invasivo.
Fleabag é uma série sobre situações absurdas que nas mãos daquelas pessoas imperfeitas se tornam mais reais. O tom vai de cômico para trágico ou vice versa num piscar de olhos, porque como na vida nenhuma situação se resume a apenas uma perspectiva e uma emoção. Fleabag traduz em comédia sensações quase inexplicáveis de tão complicadas, sem nunca abrir mão da sensibilidade e empatia necessária para retratar decisões, reações e relações de maneira tão próxima da realidade.