Quem conhece o Riot Grrrl sabe que esse movimento e os fanzines estão intimamente ligados. O zine (como chamamos normalmente) são produções independentes que têm como princípio o “faça você mesmo” (do inglês DIY – do it yourself). Não existem padrões ou formatos preestabelecidos, a ideia é que seja uma livre expressão, em que qualquer pessoa que tenha ideias, vontade, papel e caneta possa fazer.
Este sempre foi um instrumento importante dentro dessa cultura, originalmente. Riot Grrrl #1, produzido por uma união entre Allison Wolff e Molly Neuman, da banda Bratmobile, Kathleen Hanna, da Bikini Kill, e a amiga Jen Smith (além de outras mulheres que colaboraram com textos e imagens), foi o primeiro impresso realizado com o objetivo de distribuir para garotas em shows de punk rock na cidade de Washington D.C., em julho de 1991.
Eu sempre fui apaixonada por zines, a Hard Grrrls surgiu do desejo de ter um espaço de expressão. Na trajetória dos zines punk-feministas no Brasil, muitos zines e coletivos chegaram, se foram, se renovaram… Mas, para mim, um nome é a consolidação de tudo: Camila Puni.
“A primeira vez que peguei um zine em minhas mãos pude sentir que ali eu teria espaço para escrever, recortar e colar o que eu quisesse. Uma pequena zona de liberdade, zine… zona de passagem”, nos revela Camila.
Na metade dos anos 90, ela tinha por volta de 17 anos e morava em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo. “Nesse período fitas cassetes com punk-feminista, zines, cartas coloridas chegavam em minha caixa de correios toda semana. Época dos selos de 1 centavo, curiosidade e sede por tudo que girava ao redor do punk, do subversivo, do perigoso e do riot grrrl”, relembra ela, com brilho nos olhos.
Nos anos 2000, começou ter contato com algumas garotas de cidades ao redor, “elas vinham aos shows e traziam suas produções (zines, camisetas, bottons) e colocavam tudo em banquinhas (expunham em cima de uma mesa de bar) pra exibir o que elas mesmas estavam criando. Assim percebi o que era o d.i.y (faça você mesmx) e entendi como os coletivos tinham (e têm) essa força de transformação em nossas próprias vidas”.
Eu a conheci em 2003, uma garota cheia de vida, fomentadora de união feminista, projetos despretensiosamente grandiosos e produtora de conteúdo independente.
Nos encontramos no III Festival de Rock Feminino, em Rio Claro. Eu estava lá pra tocar e ela, para expor as instalações da U.F.I (União Feminista do Interior). A produção do coletivo ia de cartazes a instalações, passando por panfletos e pequenos zines. “Organizávamos excursões para eventos feministas, tudo com muita sede de viver o mundo”, explica Camila.
Nesse dia, em especial, eu me lembro de Barbies dentro de uma gaiola de passarinho que, segundo ela, levavam pra todos os lados!
Ela levou o fanzine pra dentro da academia. Cursando doutorado em Arte & Design na PUC-RJ, sua pesquisa tem as produções independentes feministas como foco.
“A princípio notei que muito do que se produziu e produz sobre essa mídia radical zines, pertence ao mundo dos homens, ao mundo ‘macho-core’, ou mesmo contando a história deles com eles, para eles. Daí fui abrindo minha pesquisa pra encontrar quem de minha rede afetiva-política estava também olhando para os zines. Encontrei algumas companhias nessa caminhada e isso me ajuda a seguir com esse objeto frágil-forte, não acadêmico, não editável, não digital.” E nos contextualiza: “Tenho seguido uma linha interessante pra estudá-los aproximando-os às colagens de mulheres dadaístas e surrealistas, das bichas filósofas e principalmente com as zineiras do Rio de Janeiro e seus arredores. Mas é claro que a todo tempo tenho que localizá-lo como “suporte artístico” porque no meio que estou é esse código. Conto com um grupo de pesquisa muito incrível, não pertenço a “uma linha de pesquisa”, mas a uma rede afetiva de pesquisa”.
Camila está com Curto-Circuito de zines feministas (2015-2017) em cartaz, até o dia 4 de agosto, uma instalação dentro da exposição Os corpos são as obras no espaço Despina, Rio de Janeiro-RJ. “A instalação é a exibição de um pedacinho da minha pesquisa de doutorado que tem como principal objeto zines contemporâneos no espaço-tempo: 2015-2017 na América Latina e além (quem sabe)”.
Nesse trabalho, ela conta a história dos zines com os próprios zines encontrados no universo punk-feminista (e outros espaços) em cidades como Rio de Janeiro (grande Rio e Baixada), São Paulo-SP, Florianópolis-SC, Belo Horizonte-MG, Porto Alegre-RS, Curitiba-PR. “Tenho recebido os zines por carta, trocado pessoalmente, comprado em feiras (grandes e pequenas). Tenho seguido a produção zinística ao meu redor por (e entre) uma rede que é afetiva de amizade-feminista.”
Há uma diferença entre os zines do passado e os atuais. E, para ela, os zines tinham uma pegada textual bem marcante, recortes de jornal e revista apontando criticamente temas políticos e sociais, libertação animal, padrões de beleza e racismo estavam sempre nas páginas fotocopiadas em escala de cinza. “E claro, os zines eram como informativos da cultura libertária (como chamávamos), pois nos mostravam uma face do mundo bem diferente. Traziam em envelopes as datas dos próximos eventos: debates feministas, verduradas, oficinas de todos os tipos só para garotaxs, reuniões abertas e chamados – sim havia um chamado, uma voz, um grrrito – nesses zines. Acho que era como no tom da banda Bulimia nos dizendo: ‘É a sua vida… lute por ela!'”.
Já nos zines atuais, ela percebe que há uma experimentação com diferentes tipos de papel e impressão; que continuam – na maior parte – fora do mundo digital; os temas são diversos, de saudade à astrologia, transformações de si, relacionamento aberto, dinâmicas da cidade, desenhos e HQ’s autorais, feminismos e transfeminismo, auto-amor e auto-cuidado, masturbação, BDSM.
“Mas é evidente que essas temáticas também estavam presentes lá no comecinho dos anos 2000, porque, afinal, a linha do tempo não é bem uma ‘linha’, seria mais como uma espiral arredondando o presente-passado-futuro. E os zines estariam agora (e sempre) nessa intersecção do frágil-forte podendo ser, a qualquer momento, destruído (rasgado, molhado, esquecido, queimado), mas que antes poderá fortemente provocar rupturas, atingir microfendas ou até catarses de si.”
No geral, Puni diz que “há banquinha com zines baratinhos e xerocados, há banquinha de zines custando a partir de R$ 30, e há banquinhas onde os zines são livros, revistas, colagens (em algum nível a noção de zine se misturou ou se lambuzou nas produções gráficas de Artes&Design)”.
Em nossa conversa, a questiono sobre a importância dos fanzines em sua vida e ela me responde “realmente já está ficando difícil falar de zines e não colá-lo em minha vida como um todo. Essa pequena zine-zona de passagem acabou se enlaçando às minhas temáticas de pesquisa-trabalho. Tomou vida numa linguagem pra facilitar trocas educativas (com os zines em projetos escolares), metodológicas (pensando na publicação Didática-zine), tomou dimensão afetiva em minhas pastas-arquivos (pensando na pesquisa de doutorado), mas também como expressão de si (pensando nos 16 anos de meu poezine), ou ainda como forma de escrita, de posição político-artística, nos modos de ser professora e existir no mundo. Zine, pra mim é zona de passagem ao infinito de si. Um si que é coletivo“.
“Mas por que zines feministas? Porque são vozes, letras, rabiscos, colagens, HQ’s e poesias datilografadas com raiva, afeto e sangue”, conclui Camila.
SERVIÇO
Exposição “Os corpos são as obras”
Em cartaz até o dia 4 de agosto – entrada gratuita.
Visitação de terça a sexta-feira, das 11 às 19 horas.
Despina: Largo das Artes | Rua Luís de Camões, 2 – Sobrado | Centro, Rio de Janeiro.
Curadoria de Pablo Leon de la Barra e Guilherme Altmayer.
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Se quiser conhecer mais sobre a história do movimento Riot Grrrl e as produções de fanzines punk-feminista, não deixe de baixar o livro Palavras e Guitarras: Retratos da mulher no punk rock de Rúvila Magalhães Avelino.
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