O Divã de hoje é anônimo.
“Fui criada por um pai que era machista com a minha mãe, mas o oposto comigo. Ela não podia trabalhar, eu deveria ter uma carreira. Ela deveria depender dele para resolver o que fosse, eu era ensinada a me deslocar pela cidade, fazer reparos em casa, negociar o que fosse. Eu era incentivada a falar, tomar posição, ela silenciada. Eu era incentivada a ter amigos, a ter namorados, ela, a ser ‘mãe de família’.
Tudo isso foi criando algo em mim que só identifiquei depois de me propor a entender através da terapia. Tudo isso fez de mim uma mulher forte, segura, independente, prática, mas o meu inconsciente estava recheado das contradições machistas que nem eu mesma fazia ideia do quanto.
Fui me acostumando a me envolver com homens egoístas, egocêntricos, autocentrados.
Me acostumei com a visão de que eles estavam num momento de transição, de que precisavam cuidar de suas vidas, de que precisavam fazer seus planos acontecerem. E assim fui sendo consumida sem perceber.
Por ser forte, segura, bem resolvida, existia em mim um duplo movimento: o de que eu poderia cuidar e fortalecer esses homens e o de que eu poderia ser extremamente compreensiva, já que a vida deles estava um turbilhão.
Acontece que, no meio dessas histórias, quando eu via, já tinha ultrapassado todos os meus limites de bem-estar emocional. Eu era negligenciada, eu era tratada como se não fosse parte da vida deles, mas, ao mesmo tempo, sentia que supria várias carências e necessidades alheias, não só as emocionais, mas também intelectuais e sexuais.
Ao questioná-los, em geral ouvia respostas do tipo: ‘não posso me apaixonar/me envolver agora’, ‘você sabe que estou num momento em que não posso assumir nada’, ‘ainda não superei minhas histórias do passado’ , ‘ainda não sei o que sinto por você’, ‘o problema não é com você, é comigo’, entre outras frases desse tipo.
A mágica dessa situação é que esses homens me colocavam em suas vidas, apresentavam para família — sempre de uma maneira vaga —, faziam viagens comigo, apresentavam para amigos de infância, diziam para deixar coisas minhas em suas casas para facilitar, compunham músicas e me enviavam pela manhã como bom dia. Mas, não, eles não podiam se envolver. Não, não estávamos envolvidos.
Tenho claro que cada pessoa tem um tempo e um modo de se relacionar, mas não consigo entender como podia somente eu estar errada. Afinal, a expectativa era ‘só minha’, eu a criei, eu que lidasse com ela. Já ouvi isso também.
Tantas vezes ouvi ‘você é maravilhosa demais pra ficar comigo’, ‘você é muito grande pra mim’.
Segui minha vida depois de cada história com dignidade, com aprendizados, sentindo mais força e leveza, mas não sem passar por uma descida a meu inferno particular.
De um lado fico pensando que devo ser ‘mais’: mais paciente, mais boazinha, mais cuidadora, mais compreensiva. De outro, que devo ser ‘menos’, menos inteligente, menos independente, menos forte, menos intensa, menos crítica.
É uma dualidade herdada de minha própria história familiar: uma mulher submissa, subserviente, enfraquecida em sua autonomia, versus uma mulher forte, segura, bem resolvida, independente, viva.
Se, do ponto de vista consciente, sei o que sou, o que devo ser e como mereço viver, as vozes machistas, sexistas, misóginas e patriarcais vindas da sociedade, e refletidas de alguma maneira em minha história familiar, ainda lutam para ter força em mim.
É um constante teste que vem na forma desses homens que cruzaram meu caminho.
Hoje já lido com muito mais propriedade com essas situações. Já sei sair delas. Aliás, já sei como nem entrar nelas. Sei da minha força na solitude, sei do meu amor próprio, mas a caminhada foi árdua e ainda é.”
* As opiniões aqui expressas são da autora ou do autor e não necessariamente refletem as da Revista AzMina. Nosso objetivo é estimular o debate sobre as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
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